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Filho único

Príncipe ou pequeno ditador?

 

Nas conversas entre amigos, é comum ouvirmos o comentário “é filho único”, como justificação de comportamentos egoístas, mimados ou caprichosos. Serão estas características comuns a todas as crianças que crescem sem irmãos? E se criar um filho único constituir um desafio maior do que gerir uma família numerosa? O risco de criar um pequeno ditador existe, mas os especialistas defendem que este pode ser contornado com bom senso e imposição de limites. 

 

O decréscimo da natalidade faz com que a anterior e rara condição de filho único seja hoje encarada como um fenómeno banal. Em Portugal, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística, mais de 800 mil casais têm apenas um filho, superando o número de casais com dois filhos (600 mil) e, em larga medida, o número de casais que têm três filhos (134 mil). De acordo com Nelson Lima, neuropsicólogo e presidente do Instituto da Inteligência, o papel de pais, restantes familiares, amigos e professores é fundamental na educação e sociabilização destas crianças, uma vez que delas irá depender o seu comportamento futuro enquanto adulto.

 

“Os perigos vêm do excesso de protecção e de atenção que podem adulterar a formação inicial da personalidade da criança (a chamada personalidade aprendida). Nestes casos, criam-se matrizes ou códigos mentais que podem fazer despontar atitudes e comportamentos marcados por egocentrismo exacerbado, sentimentos de grandeza, narcisismo e outras perturbações”, alerta o especialista. Não podendo repartir a atenção por outros filhos - que, geralmente, têm personalidades e naturezas diferentes - os pais tendem a mimar o filho único e a colocá-lo num pedestal ou redoma de vidro: “O perigo mais frequente verificado neste tipo de reacção dos pais é o desenvolvimento de uma personalidade desequilibrada, com casos de afectividades inseguras, personalidades ansiosas e medos ou mesmo reacções impulsivas, condutas agressivas e despóticas.”

 

Outra característica habitualmente apontada aos filhos únicos está relacionada com a sua excessiva timidez ou introversão. Na opinião de Nelson Lima, o ambiente em que a criança cresce, bem como a sua herança genética, são pontos fundamentais na definição destes traços da personalidade: “Tanto a introversão como a extroversão têm uma forte componente biológica. A timidez resulta mais das experiências de vida nos primeiros anos. É fácil tornar uma criança tímida e amedrontada, mas isso é um crime educacional que não pode ser autorizado. Pelo contrário, deve incutir-se na criança sentimentos seguros que equilibrem a auto-estima, a auto-imagem e a auto-confiança.”

 

A escola como ponto de fuga

Num século em que as crianças passam grande parte do seu tempo na escola e em associações de tempos livres, Nelson Lima defende que os educadores devem ter um conhecimento e sensibilização próprios relativos à temática: “Actualmente, as crianças passam muito mais tempo com as educadoras de infância, os professores e os colegas da escola. Esses agentes também exercem, por vezes de forma poderosa e irreversível, uma marcante influência no desenvolvimento mental e afectivo das crianças. Os filhos únicos tendem, por vezes, a procurar apoio (e afecto) nesses agentes já que pouco tempo passam com os pais.”

Desta forma, o especialista considera que o exemplo e a imposição de limites são fundamentais para um crescimento saudável destas crianças. Alertando para o facto de muitos pais continuarem a mimar em demasia os seus filhos (como forma de compensação pelo tempo que estão ausentes), critica abertamente o sentimento de culpa e as soluções materialistas que a maioria tende a buscar: “As crianças aprendem muito através da imitação. O que observam (em casa, na televisão, na rua, na escola, etc.) tende a ficar vincado na memória e a influenciar as decisões e os comportamentos. Boas maneiras e estilos de vida saudáveis são mais eficazes do que lições de moral e repreensões!” A este respeito, Nelson Lima defende ainda uma educação aberta, que desenvolva as potencialidades da criança: “A educação deve ser libertadora dos recursos (como a inteligência) e das potencialidades (como a criatividade), e não castradora das possibilidades de sucesso, repressiva, autoritária ou instável.” O desafio não é fácil e, por isso, reconhece: “A decisão de se ser pai ou ser mãe deve obrigar cada um a uma reflexão séria sobre a tremenda responsabilidade que essa condição impõe.”

A queda dos estereótipos

Na tentativa de contrariar alguns dos estereótipos mencionados, Carolyn White, norte-americana e mãe de uma filha única, criou o site www.onlychild.com. Nos Estados Unidos da América, a percentagem de mulheres com apenas um filho é de 23 por cento (o que equivale a cerca de 20 milhões de famílias). Na sua opinião, o filho único é naturalmente mais sociável e determinado do que as crianças com irmãos, uma vez que, para ter amigos da mesma idade, é obrigado a sair do seu círculo familiar.

Também para Ana Pina Martins, psicóloga infantil e docente do ISPA (Instituto Universitário de Psicologia Aplicada), “a sociedade fomenta estereótipos e convenções que funcionam como a-prioris e preconceitos que dividem os seres e criam miséria e injustiças sociais.” Segundo afirma, os filhos únicos não são diferentes dos outros. Ainda assim, e reconhecendo que a solidão possa criar condições para um maior pendor introspectivo, a especialista sublinha que esta não é sinónimo de egoísmo: “Nesse sentido, a sociedade, que é colectiva, é profundamente egoísta. Cultiva-se o ‘eu’ com tudo o que se pensa que mais profundamente o caracteriza: posses, títulos, honrarias... E permanece-se longe da verdadeira natureza do ser humano, que é afinal de contas a imensurável grandeza da vida.” Adoptando uma postura eminentemente crítica da sociedade contemporânea, a psicóloga e docente sugere que os pais, e os adultos em geral, pensem no que realmente significa ser egoísta, examinando-se a si próprios ao invés de se sentirem prontos a lançar o “pecado” sobre os outros: “Só assim se criarão menos crianças egoístas – sejam elas filhos únicos ou não. E também menos adultos egoístas!”

 

Como Carolyn White, Ana Pina Martins defende a desconstrução de determinados preconceitos, referindo ainda que estas crianças não são obrigatoriamente mais tímidas ou introvertidas do que as outras: “O estereótipo do filho único funciona quase como o velho cliché do ‘funcionário público’ que é, por obrigação, mau trabalhador e lazarento, como se isto fosse assim em todos os casos, ou mesmo constituísse regra comprovada. Estas características de personalidade, com uma vertente comportamental marcada, não dependem apenas da existência ou inexistência de irmãos. A forma como se educam as crianças, e se lhes permite viverem e desabrocharem de uma forma sã, é muito mais importante.”

 

Não acreditando em soluções milagrosas no que diz respeito à educação infantil, a especialista estabelece uma analogia: “É como a questão do ‘administrar da frustração’, que parece dever ‘administrar-se’ como se fora um fármaco, em doses sábias e reguladas, para que os meninos não fiquem caprichosos. Como se a vida não mostrasse bem cedo que a realização mágica dos desejos não passa disso mesmo, de contos de fadas! Aí se encontra a patologia dos adultos que se projectam nas crianças - o sábio ensinando e contendo os impulsos do naïf e inocente.” Na opinião de Ana Pina Martins, é fundamental que os pais não sintam e actuem como se os filhos fossem os seus prolongamentos narcísicos. Como faz questão de sublinhar, as crianças têm uma existência própria, e não nascem para que os pais sejam os seus donos ou pretendam realizar neles aquilo que não conseguiram realizar em si: “O factor principal reside sempre na boa relação familiar, sem atropelos à autonomização da criança, nem o desejo de que ela cresça depressa demais (sem infância) ou que fique para sempre criança (sem autonomia).” De que forma pode esta harmonia ser alcançada? Na opinião da especialista, será precisamente através do respeito e da compreensão pelas capacidades e saberes próprios da criança. E, nestes casos, a observação e a sensibilidade parecem ser os melhores remédios.

Texto Ana Catarina Pereira

Fotografia João Silveira Ramos e Humberto Almendra

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