Universal Concreto
Ana Catarina Pereira
Não se pode mudá-la?
Em momentos de crise, a religião pode ser um refúgio para aqueles que enfrentam as maiores necessidades. Apesar disso, o número de católicos praticantes tem vindo a diminuir ao longo dos últimos anos. Como resposta, dentro da Igreja, surgem algumas vozes reformistas que explicam este afastamento e que colocam o dedo em feridas abertas. Maria João Sande Lemos é uma das fundadoras do Movimento Nós Somos Igreja, para quem ter fé não significa ser cego.
É uma das personalidades mais críticas da religião que professa. Como activista dedicada a inúmeras causas sociais, Maria João Sande Lemos considera que a Igreja Católica viola direitos humanos básicos, começando pela igualdade entre os sexos. Aos 71 anos não desiste de tentar mudar a estrutura e o pensamento dominantes, tarefa que considera valer a pena pelo legado que deixará aos seus netos: “Talvez já não seja durante a minha vida, mas eu acredito que a Igreja terá de mudar, como mudaram os tempos e as mentalidades.”
Tendo trabalhado vários anos na Comissão para a Igualdade de Direitos das Mulheres, foi também, juntamente com Ana Vicente, uma das responsáveis pela chegada do Movimento Nós Somos Igreja a Portugal, em 1997, um ano após a fundação do mesmo em Roma. Nascida em Lourenço Marques, afirma que desde sempre se interessou pelas questões ligadas à discriminação da mulher. Logo a seguir ao 25 de Abril, foi uma das fundadoras, ao lado de Francisco Sá Carneiro, do Partido Social Democrata, tendo poucos meses depois formado um grupo de mulheres afectas ao partido. Sendo a política uma das suas causas e, simultaneamente, uma das áreas que considera mais débeis em termos de igualdade de género, lamenta que a religião não lhe fique atrás.
Como católica praticante, afirma acreditar em Jesus Cristo e nas palavras do Novo Testamento, não contrariando qualquer dogma da Igreja: “O que funciona mal é a estrutura hierárquica, que sufoca o povo de Deus e o católico comum. O Vaticano não acredita que o Espírito Santo ilumina todos os seres humanos; acha que só os bispos (e nem sequer os padres) são pessoas iluminadas.” Para Maria João Sande Lemos, a mulher é mal vista (e tratada) pela Igreja, representando o pecado e todas as fontes do Mal, desde o tempo de Adão e Eva até aos nossos dias. Na opinião de muitos católicos conservadores, esta forma de pensar e de se manifestar publicamente, comum aos restantes elementos do Movimento Nós Somos Igreja, é quase uma heresia levada a cabo por infiéis, pelo que frequentemente lhes dirigem comentários de censura: “Perguntam-nos muitas vezes porque é que, se não nos identificamos com a Igreja, não nos vamos embora? Nós respondemos que somos católicos, crentes, e que apenas desejamos que as coisas melhorem! Mudar de Igreja é como mudar de partido – não vale a pena, porque todas têm os seus problemas.” Apesar de reconhecer invejar as igrejas protestantes, por terem mulheres pastoras ordenadas, afirma com determinação que jamais mudaria de Igreja.
Para a representante do polémico Movimento, a religião deverá assim ser universal, integrante e não discriminatória. Citando a Carta de São Paulo aos Gálatas, relembra que: “Não há judeu nem grego, não há servo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo.” Na sua opinião, esta é a prova de que todos os seres humanos têm o mesmo valor, independentemente da sua condição social, género, idade ou orientação sexual. Sendo esta última, outra questão polémica no seio da Igreja, Maria João Sande Lemos discorda da posição maioritária relativa aos homossexuais: “Algumas pessoas têm uma orientação homossexual distinta, e que é genético. As pessoas nascem assim, como todos nós sabemos. Não se pode discriminar ninguém por isso!”
Durante a última campanha de referendo, fez também questão de se manifestar publicamente a favor do “sim” à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, assumindo uma posição igualmente contrária à do Vaticano: “Como é possível excomungar uma mulher que pratica um aborto, e não se fazer nada relativamente aos padres pedófilos que maltratam crianças?” Considerando que existem dois pesos e duas medidas para julgar homens e mulheres católicos, Maria João Sande Lemos defende a excomunhão de todos os padres que pratiquem actos pedófilos: “Se tivessem sido mulheres católicas a cometer esse tipo de crimes, há muito tempo que já teriam sido excomungadas!”
Relembrando novamente alguns exemplos práticos da história recente, sublinha que a Igreja excomungou um padre por este ter assumido a paternidade da filha: “Por outro lado, ignoraram completamente a história do Padre Frederico, que cometeu vários actos de pedofilia na Madeira. Deixaram-no fugir para o Brasil! Como é que se pode compactuar com isto?” Mas as incongruências da Igreja Católica não se ficam, no dizer de Maria João Sande Lemos, por aqui. Segundo afirma, é inconcebível que uma Igreja que professa o celibato dos padres integre sacerdotes anglicanos, convertidos e casados.
Sublinhando que, no ano passado, houve dioceses em que a assistência à missa de domingo desceu 20 por cento, acredita que este decréscimo é motivado pelos próprios representantes da Igreja e uma consequência natural da resistência à mudança. Não considerando que exista uma crise de vocações, defende o fim do celibato dos padres, para que os jovens possam manifestar livremente a sua fé e, simultaneamente, manter uma vida pessoal equilibrada. A este respeito, um dos pontos que o Movimento Nós Somos Igreja defende é o fim da fixação negativa na sexualidade, devendo esta ser encarada como uma parte fundamental da vida (e do bem-estar) de qualquer pessoa. Da mesma forma, consideram que a proibição dos métodos anti-concepcionais foi o princípio do descrédito da Igreja: “99,9 por cento dos casais católicos tem, obviamente, preocupações de planeamento familiar. Ninguém liga nenhuma a essa proibição. As mulheres vão à missa, comungam e tomam a pílula na mesma.”
Por sua vez, ao eterno argumento de que as mulheres não podem abraçar o sacerdócio porque os doze apóstolos eram homens, Maria João Sande Lemos responde que, tendo sido a Última Ceia uma festa judaica, nela estiveram certamente presentes mulheres e crianças: “Isso nem sequer é um argumento! As mulheres sempre tiveram um lugar importante no Evangelho e no séquito de Jesus. As mulheres, naquela altura, não tinham qualquer estatuto jurídico, e Jesus foi contra essa corrente da sociedade, o que o chegou a levar à morte. Hoje em dia, esse exemplo está completamente esquecido.”
Ainda assim, apesar de defender activamente a ordenação das mulheres, Maria João Sande Lemos afirma nunca ter sentido essa vocação: “Apenas luto porque considero que é uma questão de direitos humanos. Não há nada no Novo Testamento que diga que as mulheres não podem ter o sacramento da Ordem; como também não há nada que diga que os padres têm que ser solteiros. Há imensas freiras em Portugal que gostariam de ser ordenadas, e que certamente dariam excelentes sacerdotisas.” Se esta foi, como volta a relembrar, uma questão cultural, a evolução histórica ditou a alteração das regras: “No Novo Testamento aceitava-se a escravatura, mas hoje em dia ela é considerada crime. Já se percebeu que a problemática das mulheres também tem que ser vista de outra maneira.”
Defendendo um imenso processo de reestruturação em toda a estrutura eclesiástica - como os anteriormente realizados por Martinho Lutero e pelo Papa João XXIII - assinala que este será o único meio para a Igreja se reaproximar das pessoas. Crente por natureza, não considera, no entanto, possível que tal reforma venha a ser incentivada pelo actual pontífice da Igreja Católica: “Como Papa, é péssimo! Foi o homem da actual Inquisição, que silenciou e perseguiu todos os teólogos. Ele cria uma atmosfera de sufoco de pensamento dentro da Igreja.” Polémica e controversa, Maria João Sande Lemos defende assim as causas em que acredita. Uma delas é que a Igreja Católica deverá professar o amor ao próximo e integrar todos os seres humanos, em vez de excluir parte deles.
Ana Catarina Pereira