Universal Concreto
Ana Catarina Pereira
Ciência (muito) viva em Portugal
Introdução:
Entre o passado domingo e quarta-feira 2000 pessoas assistiram ao Encontro com a Ciência e Tecnologia em Portugal, realizado no Centro de Congressos de Lisboa.
A adesão foi notória e as filas para inscrição impressionaram os mais cépticos, sobretudo quando se lembravam que Julho e Agosto são meses que varrem os lisboetas para as praias e despovoam a capital. Esteve um calor convidativo e a pergunta impôs-se: o que teria atraído aquela multidão? A Notícias Magazine foi descobrir. Pelo que rapidamente nos apercebemos, os temas das conferências eram os mais variados: de recentes investigações nos oceanos do mundo inteiro, à crise económica (também essa internacional), passando pelas neurociências, alguns avançados sistemas de segurança informática e interessantes projectos de arte e design a serem desenvolvidos em território nacional, tudo foi discutido.
Os números deste encontro
Na cerimónia de abertura do Ciência 2010, o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, José Mariano Gago, apresentou alguns números que marcam a evolução deste encontro:
- As primeiras Jornadas de Investigação Científica e Tecnológica realizaram-se em 1987;
- Nesse ano, as estatísticas da OCDE diziam que Portugal tinha apenas uma média de 1,5 investigadores por cada mil activos;
- Vinte e três anos depois esta fracção subiu para 7,2 por cada mil activos e é já superior à média europeia;
- Portugal tem actualmente cerca de 40.000 investigadores que trabalham a tempo inteiro em diferentes áreas do conhecimento. Destes, 43 por cento são mulheres - a maior percentagem dos países da OCDE.
- Já na quarta edição, o Encontro Anual de Ciência foi promovido pelo Conselho dos Laboratórios Associados (CLA) e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), tendo ainda a colaboração do Ciência Viva (Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica).
- Ainda durante a cerimónia de abertura, o Primeiro-ministro José Sócrates fez questão de sublinhar que parte do sucesso desta iniciativa se deve ao investimento do Governo no desenvolvimento científico. Sendo esse investimento de 1,55 por cento do PIB, o Primeiro-ministro estabeleceu como meta atingir os 3 por cento de investimento em 2020.
O eterno problema dos meios de comunicação social
Coube a um dos mais prestigiados cientistas nacionais a missão de dar o mote a este encontro. Para Alexandre Quintanilha, secretário do Conselho dos Laboratórios Associados (CLA), este encontro serve essencialmente para desenvolver uma massa crítica científica e uma plataforma para jovens investigadores. Lançando um claro apelo aos elementos do Governo aí presentes, o antigo director do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC) admitiu saber que o investimento no conhecimento é sempre dispendioso: “mas a ignorância é certamente muito mais cara para o país”, acrescentou em tom pedagógico.
À Notícias Magazine, Alexandre Quintanilha confessou a surpresa (e o orgulho) pelas 2000 pessoas que se inscreveram para assistir ao evento: “Eu sei que é a quarta vez que nos juntamos, mas confesso que estou estupefacto com toda esta curiosidade que conseguimos despertar. É importante que as pessoas saibam o que podem pedir à ciência.” Uma das grandes vantagens deste encontro, na opinião do cientista, é a possibilidade de constituição de uma plataforma para jovens investigadores que aqui descobrem interesses em comum com outros investigadores, ou mesmo laboratórios com projectos aos quais se podem vir a associar.
Por outro lado, ressalva Quintanilha, este é também um fórum de discussão sobre os meios que a ciência pode utilizar para chegar ao público. Apontando o dedo aos órgãos de comunicação social, afirma que muitos sacrificam as suas secções de ciência e cultura em prol dos acontecimentos desportivos e dos escândalos: “Isto não está só a acontecer em Portugal. Nos EUA, por exemplo, é fulcral - as redacções têm cada vez menos jornalistas especializados nestas temáticas.” Para combater esta apatia dominante, o investigador sublinha o número crescente de cientistas que se deslocam às escolas ou que divulgam as suas actividades e pesquisas através da Internet.
De entre as novidades introduzidas este ano, Alexandre Quintanilha destaca ainda as sessões plenárias, com temáticas gerais, que tiveram lugar no Grande Auditório. Em termos de conhecimento científico, estas eram as mais acessíveis e, talvez por essa razão, as mais concorridas em termos de público. Da plateia foram fazendo parte investigadores científicos de todas as áreas, curiosos de todas as idades e muitos alunos do ensino secundário. Fernando Fraga foi um deles. Assistiu a todos os plenários gerais e seleccionou as várias sessões que mais o interessavam. A terminar o 12º ano na Escola Secundária de Odivelas, o futuro engenheiro químico está confiante na sua entrada na Universidade Nova de Lisboa. A boa média com que conclui esta fase da sua vida de estudante foi conseguida através de muito estudo e, confessa, muita curiosidade em conhecer os próprios caminhos que a ciência vai construindo: “Acho que sempre soube que queria ser cientista. Também tive influência familiar, porque o meu pai é médico, mas eu sempre gostei de investigar nesta área.”
Assim, Fernando Fraga foi um dos mais de 1200 alunos do ensino secundário que, no ano passado, ocuparam parte das férias de Verão nas iniciativas promovidas pelo Ciência Viva: “Visitei vários laboratórios de universidades portuguesas. Fui mesmo ver os sítios onde se faz ciência”, especifica entusiasmado. Quando recebeu o convite para vir assistir ao encontro não pensou duas vezes: “O Ciência 2010 é uma óptima maneira de reunirmos todos os investigadores e encararmos os problemas.” Um deles, não se coíbe de dizer, é a falta de divulgação da ciência nos meios de comunicação: “Sinceramente, não me identifico muito com o que se vai noticiando nos jornais e na televisão em Portugal. Em relação à ciência, parece-me que, nos últimos tempos, os meios de comunicação social têm uma grande carência de conteúdos. Pensando bem, não é só nos últimos tempos…”
Robots que melhoram o dia-a-dia dos humanos
Uma das sessões plenárias mais aplaudidas do Encontro teve como oradora a cientista portuguesa Manuela Veloso. Contas feitas, há mais de vinte anos que se dedica ao estudo da Robótica, na Universidade de Carnegie Mellon, nos EUA. Um vasto período da sua vida que lhe permitiu chegar a algumas conclusões importantes, sendo que a primeira delas diz respeito à autonomia dos robots. Tal como uma psicóloga ou um neurocientista que estuda a mente humana, Manuela Veloso investigou aprofundadamente a percepção, a cognição e a acção dos robots. Numa fase posterior, concluiu que estes têm uma visão limitada e que não conseguem realizar determinadas tarefas. No entanto, percebeu também que os mesmos se encontram perfeitamente conscientes das suas incapacidades e que, por essa razão, estão aptos a pedir ajuda humana.
Para comprovar a sua teoria, a investigadora avança mesmo alguns exemplos práticos: “Isto pode ser aplicado na melhoria da qualidade de vida de pessoas com mobilidade reduzida.” Mostrando vídeos em que os robots recebem ordens humanas e realizam determinadas actividades, a investigadora relembra que estes podem ser úteis em hospitais ou clínicas de saúde: “Imagine que pretende ir fazer análises e que, na recepção, lhe dizem para ir ao quinto piso, depois virar à esquerda, terceira porta… Quando lá chegar o mais provável é não se lembrar de nada. Estes robots podem guiar as pessoas, se lhes dermos esse tipo de instrução.” Caso eles não consigam abrir portas ou estar em determinados ambientes com muita luz, Manuela Veloso considera que este tipo de progressos deve ser feito precisamente com interacção humana: “Para os humanos, isso são tarefas fáceis. Assim, podemos vir um dia a ter uma sociedade com robots, se relaxarmos esta agonia de querer pôr o robot a fazer tudo.” Com o mesmo tom entusiástico, conclui a explicação: “Para a robótica, é fundamental colocar robots em Marte ou no fundo de determinados oceanos, porque os seres humanos não podem ir lá. Essa é uma prioridade absoluta, o que não é o nosso caso. É verdade que não vamos inventar nem descobrir nada. Mas eu considero que esta é mais uma oportunidade para melhorarmos a nossa qualidade de vida.”
A luta contra o cancro e a segurança dos sistemas informáticos
Gabriela Almeida, cientista do IPATIMUP - Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto - apresentou também o projecto de investigação oncológica que coordena e que envolve doze investigadores de três laboratórios distintos. Sinteticamente, considera que as grandes vantagens da quimioterapia em doentes com cancro são o aumento de percentagem de hipóteses de cura e a melhoria da qualidade de vida. Existem, no entanto, algumas desvantagens como a toxicidade produzida nas células normais. Segundo afirma, “os quimioterapêuticos convencionais não afectam só as células cancerígenas, mas também as células normais. É por isso que as pessoas perdem o cabelo, têm distúrbios gastrointestinais e uma supressão do sistema imunitário.” Em resumo, os doentes sujeitos a quimioterapia estão mais sujeitos a sofrerem doenças ou infecções várias.
Posto isto, Gabriela Almeida, juntamente com a equipa que dirige, decidiu estudar a resistência farmacológica que se desenvolve juntamente com estes tumores e que, na maioria dos casos, faz com que o tumor volte a surgir anos mais tarde. Cientificamente, acredita-se que esta resistência é causada pelas células estaminais cancerígenas, o que motivou a sua pesquisa: “Nós estamos a estudar estas céluas para tentar descobrir formas de as tornar mais sensíveis à quimioterapia. Assim, poderemos eliminá-las e evitar a recorrência tumoral.”
Noutra sessão dedicada ao tema da segurança de informação e protecção de infra-estruturas críticas, Mário Freire, da Universidade da Beira Interior, apresenta alguns pormenores de um projecto sobre segurança na Internet. Depois de complicados códigos e fórmulas transmitidos numa linguagem que, definitivamente, não partilhamos, o investigador acede em traduzir-nos a sua apresentação. Imagine então o leitor que é administrador de um qualquer site de uma empresa, e que esse mesmo site é acedido por milhares (ou milhões) de visualizadores do mundo inteiro, partilhando conteúdos e informação. A dada altura, pretende realizar uma tarefa interna, como o processamento de salários, uma comunicação para os seus colabores, ou qualquer outra actividade similar. Não pode, porque a largura de banda se encontra ocupada pelas aplicações “Peer2Peer” - os conteúdos que são partilhados entre pares.
Assim, Mário Freire percebeu que deveriam existir estratégias que permitissem às empresas detentoras destes sites bloquear o tráfego em determinados momentos nos quais necessitassem de ter mais largura de banda disponível. O processo não passa simplesmente pela descodificação e bloqueio do IP (ou endereço) do computador que está a aceder ao site: “As aplicações Peer2Peer de que estamos a falar conseguem encriptar o tráfego, ou seja, não se consegue ver o que lá vai dentro. Para além disso, o IP varia consoante o peer que nos está a fornecer esse conteúdo. Não é sempre o mesmo servidor que gere esse tráfego. Esse tráfego está distribuído por milhares de utilizadores, e pode ser qualquer um desses milhares a enviá-lo.” O projecto encontra-se ainda na fase de investigação, já tendo sido divulgado em várias publicações científicas. Espera-se que possa vir a chegar ao utilizador comum (e às empresas) o mais rapidamente possível.
As artes e o design
Neste quarto encontro de cientistas introduziu-se ainda uma grande inovação. Christopher Frayling, do Royal College of Arts, no Reino Unido, felicitou os organizadores da conferência por, pela primeira vez, colocarem ciência, tecnologia, arte e design no mesmo patamar de investigação. Criticando abertamente o snobismo da ciência (e dos seus habituais produtores) face às artes, à cultura e ao design, considerou importante que se divulgue e incentive a investigação ligada a estas últimas áreas.
Numa sessão específica, investigadores da Universidade Católica e do INESC, no Porto, da Faculdade de Belas Artes e da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, da Universidade da Beira Interior e do Algarve puderam apresentar muito resumidamente os projectos que desenvolvem e que são únicos nas suas especificidades. Entre eles, destaque para uma base de dados com todas as teses científicas realizadas sobre cinema português que está a ser desenvolvida pelo Labcom, da Universidade da Beira Interior, enquanto o Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras de Lisboa está a criar um site com todos os momentos representativos da história do teatro em Portugal. A interdisciplinaridade destes grupos, bem como as dificuldades de comunicação de alguns deles, foram assim sublinhadas. Uma sessão plenária e um pequeno painel marcaram desta forma o modesto início do que se espera vir a ser uma iniciativa mais consistente nos futuros anos. As restantes áreas foram institucional e individualmente bem representadas. E aplaudidas com entusiasmo, provando que a ciência em Portugal não só está viva, como de boa saúde.
Ana Catarina Pereira