Universal Concreto

Ana Catarina Pereira
Cultura em tempos de crise
Num momento em que os jornais e noticiários televisivos não param de anunciar cortes orçamentais e aumentos dos impostos sobre bens de primeira necessidade, é justo questionar como se poderão financiar novos projectos culturais. Estará a produção cultural suspensa, à espera de melhores dias do estado das Finanças? Não necessariamente. Sem subsídios públicos ou apoios de empresas e fundações privadas, muitos são aqueles que se recusam a estagnar. Nós mostramos-lhe três exemplos de subsistência, por teimosia e amor à arte.
Avanca: Um Cineclube construído pelos habitantes da terra
Longe vão os tempos em que os poucos eventos culturais do país passavam invariavelmente por Lisboa e Porto. Avanca é uma pequena vila pertencente ao concelho de Estarreja e ao distrito de Aveiro. Com pouco mais de 6500 habitantes é a prova de que nem só da capital e da invicta vive a produção artística nacional.
Aqui nasceu o primeiro Prémio Nobel português, o neurologista Egas Moniz. E aqui nasceu também uma geração que quis ter acesso a cultura numa localidade onde, há 33 anos, muito pouco acontecia. António Costa Valente faz parte dessa geração. Hoje, com 50 anos de idade, recua no tempo e relembra a fase da adolescência em que o mundo do cinema passou a fazer parte da sua vida e não mais o largou: “O Cineclube de Avanca surgiu, primeiramente, porque não havia nada. Em segundo lugar, porque havia imensa vontade que passasse a haver.” A razão fica assim sucintamente explicada pelo actual presidente da associação, que acrescenta em modo nostálgico: “Éramos uma geração que tinha preocupações com a arte - uns mais com a literatura, outros com a pintura. De alguma forma, o cinema estava ali no meio. Funcionou como elemento aglutinador dos nossos interesses, reunindo a imagem e a escrita.”
Traçado um objectivo comum, era necessário encontrar uma sala de cinema, tendo sido a paróquia a ceder o espaço e a máquina de projectar. Havia então que reunir mais alguns esforços e centrar as atenções no tipo de programação desejada sendo que, desde o início, se decidiu dar uma oportunidade a novos talentos e privilegiar o cinema amador. Aveiro, como relembra António Costa Valente, tinha já alguns potenciais realizadores, “que filmavam mais do que um conjunto de imagens de fim-de-semana e que faziam filmes interventivos, politicamente actuantes e socialmente interessantes”. Por outro lado, a vocação para o cinema de animação que ainda hoje os caracteriza foi uma ajuda em termos financeiros, por este não exigir os avultados recursos da ficção: “Nós iniciámos actividade há 33 anos, mas só recebemos o primeiro subsídio dez anos depois. Foi cedido pela Junta de Freguesia de Avanca, e foi um valor simbólico que hoje corresponderia a um euro.” A partir daí, os apoios foram sendo somados e mais substanciais, sobretudo por parte do Instituto Português da Juventude.
Mais de trinta anos passados, a mesma geração que fundou o Cineclube, bem como as novas que se foram associando ao projecto tiveram, literalmente, que deitar “mãos à obra” para que a cultura em Avanca pudesse ser contemplada nas melhores condições. Com um objectivo ambicioso, a direcção do Cineclube pretende passar a exibir filmes numa sala própria. A história do edifício já vai, no entanto, longa: em 1992, a Câmara Municipal de Estarreja atribuiu-lhes um lote de terreno no centro da freguesia. Dois anos mais tarde, o IPJ - Instituto Português da Juventude cedeu o primeiro subsídio. No entanto, o recomeço das obras, após um longo interregno, só foi possível com o desbloquear de uma nova licença de construção e um novo apoio do IPJ. Em tempos de crise, e sem dinheiro para terminar a construção, a direcção teve então uma ideia inovadora e original. Em Maio do ano passado, lançaram a “Campanha do Tijolo”, convidando a população local a contribuir: o objectivo era reunir 15 mil tijolos, 500 sacos de cimento e 130 metros cúbicos de areia para concluir a obra iniciada há quase vinte anos, podendo cada cidadão oferecer alguns destes materiais de construção. A primeira palete de tijolos chegou ainda durante o mês de lançamento da campanha, e desde aí o número de materiais oferecidos não tem parado de aumentar. Seis meses depois, em Novembro, já tinham recebido os 15 mil tijolos necessários, esperando agora a oferta dos restantes materiais em falta. Pela longevidade destas obras, a direcção prefere não apontar data prevista para a conclusão da obra.
Ocupando cerca de mil metros quadrados, divididos por quatro pisos, a sede do Cineclube de Avanca alberga diferentes espaços destinados à formação e produção audiovisual. Actualmente, o Cineclube já produziu mais de 50 filmes que, por sua vez, já foram galardoados com mais de 100 prémios nos vários festivais mundiais de cinema onde têm marcado presença. Em termos de formação e debate, promovem anualmente vários workshops, sessões de cinema nas escolas da região e o festival “AVANCA - Encontros Internacionais de Cinema, Televisão, Vídeo e Multimédia” que, este ano, terá a sua 15ª edição. Ao todo, contam com 300 associados que seguem atentamente a programação, sobretudo em termos de cinema português, europeu e independente: “Avanca arrisca-se a ser o sítio do país onde se projectam mais filmes do Irão, por exemplo. Isto porque achamos que há países que têm uma produção cinematográfica inesperada, que tem muito a ver com as suas raízes culturais. Isso interessa-nos porque cria um ambiente de multiculturalismo que tem dado bons resultados nos últimos anos”, afirma o presidente do Cineclube.
Cláudia Tomaz: o cinema via Internet
Na história da sétima arte, muitos são os capítulos que ditaram o lugar das mulheres frente às câmaras, projectando imagens de mães de família virtuosas ou de divas pecadoras e irresistíveis. No entanto, os últimos 40 anos têm ditado o fim destes estereótipos e uma presença maior do sexo feminino nos lugares de realização. Em Portugal, Cláudia Tomaz é um dos nomes de realizadoras que cumpriram a difícil tarefa de entrar neste universo masculino. Por outro lado, enfrentou ainda os eternos obstáculos da falta de apoios financeiros e de circuitos para distribuição e exibição dos seus filmes. Mas não desistiu. E foi por isso que, recentemente, se converteu ao fabuloso mundo das novas tecnologias, passando a utilizar plataformas online para produzir e mostrar os seus filmes. Numa altura em que as idas ao cinema parecem decair em grande escala e os downloads piratas são uma realidade incontornável, a realizadora não tem dúvidas: “O futuro do cinema e da televisão é a Internet”.
Quando terminou a licenciatura em Ciências da Comunicação, pela Universidade Nova de Lisboa, trabalhou com algumas das maiores referências cinematográficas em Portugal, como Paulo Rocha, Pedro Costa e José Álvaro Morais. Realizou várias curtas, documentários e duas longas-metragens - Noites (premiada no Festival de Veneza) e Nós (premiada em Locarno). Viveu um ano nos Estados Unidos, regressou a Portugal por escassos meses até decidir voltar a fazer as malas, desta vez rumo à capital britânica. Hoje, com 37 anos de idade e sendo cosmopolita por natureza, Cláudia Tomaz sente-se feliz por morar em Londres e passar muito tempo a viajar pelos quatro cantos do mundo. Afirma ter percebido isso a partir do momento em que começou a participar em festivais internacionais e a conhecer realizadores com experiências de vida distintas: “Não conseguiria voltar a trabalhar em Portugal. Eu estou sempre à procura de coisas novas, porque o que me rodeia influencia muito a minha vida e o meu trabalho.” A hipótese de regressar está, assim, posta de parte: “Já percebi que sou mais feliz em movimento. Sinto que, em Portugal, os realizadores não são levados a sério, o que faz com que exista uma grande falta de respeito por eles.”
Com uma vasta experiência em várias actividades ligadas à sétima arte (trabalhou como realizadora, camera-woman, editora, guionista, assistente de realização e produtora), Cláudia Tomaz começou a trabalhar em cinema digital em 2004. Actualmente, a Internet é a sua grande aposta, concretizada em Micro Films Web TV - um espaço para mostrar os seus filmes em formato micro e, simultaneamente, um projecto original que tem levado a cabo praticamente sozinha: “Há muito tempo que procurava uma forma de tornar os meus filmes acessíveis a toda a gente e de criar o meu próprio canal de distribuição, sem depender de produtores ou de distribuidores. Para além disso, estava interessada em formas alternativas de obter financiamento através de plataformas online. Com a Micro Films consegui juntar as duas coisas.”
O projecto, lançado em Novembro 2009, mereceu a atenção dos meios de comunicação social ingleses, o que fez com que, no mês seguinte, Cláudia Tomaz tivesse mais de um milhão de pessoas a verem os seus filmes. O financiamento desta aventura cibernética, segundo afirma, é simples: “Eu recebo cinquenta por cento da publicidade que aparece na página. Assim que termino a montagem de um filme, ele fica disponível na Web TV. Portanto, ao verem os meus filmes e ao votarem nos seus favoritos, os espectadores estão a contribuir para o financiamento do novo projecto, embora seja inteiramente grátis aceder aos filmes, 24 horas por dia, em qualquer lugar do mundo.” O lançamento da plataforma foi feito com a estreia de London Ground, uma série de filmes experimentais em formato curto (três a dez minutos) sobre artistas londrinos de diferentes áreas – cinema, performance, activismo, música, entre outras.
Cràse: uma loucura editada a três
Se é certo que o cinema é uma das artes que requer financiamentos mais avultados, também não é menos verdade que a literatura, o teatro ou as artes plásticas têm passado por maus momentos em termos económicos. Que o digam Luís Felício, de 27 anos, e Nuno Brito, de 28 - dois dos editores de uma nova revista de poesia que já vai no seu segundo número. A eles se juntou o mexicano Rober Diaz, o que faz com que Cràse seja uma publicação inter-continental, produzida entre três cidades: Lisboa, onde o Luís reside, Porto, onde vive o Nuno, e Cidade do México, para onde regressou o último editor, depois de ter vivido um ano em Portugal.
As formações dos três editores/poetas são distintas: Luís Felício é licenciado em Filosofia, Nuno Brito em História e Rober Diaz em Ciência Política. A paixão pelas letras, e sobretudo pela poesia, uniu-os há cerca de dois anos, quando participaram num concurso para Jovens Criadores organizado pelo Clube Português de Artes e Ideias. O plano de criarem uma revista literária foi sendo traçado à medida que iam descobrindo interesses em comum. Passados dois anos, o projecto concretizou-se e já está à venda em duas livrarias nacionais: a Trama, na Rua Filipe Néri, em Lisboa, e a Poetria, na Rua das Oliveiras, no Porto. Brevemente, garantem-nos, estarão disponíveis noutros locais. Cada número custa sete euros, uma vez que são os próprios editores que financiam o projecto. Sem qualquer tipo de publicidade ou de apoios institucionais, gostariam de aumentar a tiragem (250 exemplares) e chegar a mais pontos do país. A qualidade dos textos seleccionados e a qualidade gráfica auguram um futuro mais risonho.
Quanto ao curioso nome - Cràse - corresponde à supressão de fonemas em palavras e a um processo que se vai realizando à medida que a língua evolui: os verbos “ver” e “ser”, por exemplo, já se escreveram “veer” e “seer”, em português arcaico. Formulada a explicação teórica, descobrimos ainda o que tem este processo a ver com a nova revista literária. Luís Felício diz-nos que, com doses equilibradas de humildade e de ambição, pretendem que a revista esteja a par do seu tempo. É por essa razão que procuram jovens talentos e valores emergentes: “O nosso objectivo é juntar, em páginas, os novos autores da nossa geração.” Atentos ao que se passa na blogoesfera, estão também abertos a novas sugestões e críticas dos leitores: “Apesar de existirem algumas coisas menos boas na Internet, há também blogs muito interessantes e dinâmicos, de autores que ainda não tiveram oportunidade de publicar em papel”, afirma Nuno Brito. Sem perspectivarem a passagem a revista online, com um formato mais económico, o editor acrescenta: “O objectivo é publicar autores que consideremos urgente divulgar, pelo valor e pela invisibilidade que têm”. A Cràse é assim uma publicação quadrimestral que incluirá, nos próximos números, alguns contos e ensaios literários.
O grafismo concebido por Ana Lúcia Nobre é assumidamente simples, sendo a opção justificada por Luís Felício num tom poético: “Procurámos despojarmo-nos da forma, para que as letras pudessem respirar. Na poesia, são as relações entre as palavras que criam a imagem.” Para o editor, não faz sentido que Portugal continue a ser considerado um país de poetas e mantenha vendas tão baixas de livros de poesia: “Foi por isso que optámos por um formato tão grande (página A4) - para tentar dar mais visibilidade à poesia.”
Coragem, dedicação e investimento próprio são características comuns aos três exemplos de produções culturais que se auto-financiam. Sem apoios de um Estado em crise, mas sem desistir dos sonhos que, já dizia o poeta, comandam a vida.
Ana Catarina Pereira

