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Talento virtual

 Hugo de Almeida é o responsável pela criação da ilha da Presidência da República Portuguesa no Second Life, fenómeno que tornou Cavaco Silva o primeiro Presidente do mundo a utilizar os universos virtuais para comunicar e interagir com os cidadãos. Coordenou a primeira transmissão para um mundo virtual feita pelo Parlamento Europeu e apoia várias causas humanitárias, como a da Terra dos Sonhos. É português, tem 30 anos, nasceu em Santa Maria da Feira e dá aulas em Santarém. O seu trabalho continua a ser muito mais reconhecido no estrangeiro do que cá dentro.

 

 Aos 14 anos era um adolescente introvertido e pouco sociável. Tentando contrariar a tendência, a mãe ofereceu-lhe uma guitarra e matriculou-o em aulas de música. Passado pouco tempo Hugo de Almeida já tinha uma banda de garagem, os Neptune Falls, e estava inscrito num grupo de teatro amador. Um prenúncio da rapidez com que as mudanças na sua vida se dariam daí para a frente, embora assegure que a transformação de personalidade foi meramente profissional: “Hoje em dia as pessoas continuam a dizer que eu sou tímido, e é verdade, mas em termos profissionais as coisas já não funcionam dessa forma. Gosto de dar a conhecer o meu trabalho aos outros.”

 A arte esteve assim presente na sua vida desde os primeiros anos. No entanto, quando terminou o 12º ano, realizou uma opção mais segura e inscreveu-se no curso de Administração Pública e Autárquica, no Instituto Superior de Santarém. Os pais ficaram satisfeitos, pois esta parecia uma área com futuro garantido. No entanto, o curso nunca o realizou e um dia um professor chegou mesmo a expulsá-lo da sala de aula sem que Hugo percebesse porquê. O professor explicou: “Você devia estar a tirar um curso de cinema. O seu mundo não é aqui.”

 Pouco tempo depois, no segundo e terceiro anos do curso começaram as dúvidas existenciais. Hugo de Almeida não se identificava com as cadeiras que frequentava e sabia que a parte criativa lhe fazia falta. Um acontecimento familiar viria salvá-lo: o seu afilhado ia ser baptizado e o irmão estava decidido a pagar uma fortuna a um cameraman para filmar a cerimónia. Hugo propôs-lhe uma troca: “Compra-me uma câmara daquelas pequenas que eu filmo o baptizado!” A muito custo convenceu a família a comprar-lhe o aparelho com que, pouco tempo depois, filmaria a sua primeira longa-metragem: o documentário Academia de Submissos que ainda hoje se encontra disponível no Facebook. Durante dois meses filmou todos os rituais académicos relativos às praxes. O resultado foram mais de 70 horas de filme que, nos dois anos seguintes, montou, editou e produziu, criando alguma polémica entre os estudantes. Apesar disso, a Academia de Submissos viria a ser, em 2005, a primeira série documental portuguesa na Internet. Depois desta experiência, Hugo teve a certeza daquilo que realmente queria fazer. Inscreveu-se em dois cursos de Multimédia e Audiovisual do Observatório de Imprensa e não mais parou. Fascinado por todo o universo das novas tecnologias, começou então a traçar planos de promoção na Internet, ou seja, passou a aproveitar a realidade virtual como ferramenta de publicidade para empresas e instituições. Uma delas seria o próprio Castelo de Almourol, onde realizou várias reportagens, um site e um documentário – Os Templários em Almourol – que viria a ser distinguido pela multinacional americana Divx Inc como sendo um dos trabalhos mais relevantes da sua comunidade de vídeo com milhões de utilizadores.

 Os bons resultados da iniciativa fizeram com que fosse chamado para concluir e implementar todo o projecto de comunicação virtual, pelo que Hugo de Almeida teve duas curtas semanas para “mergulhar” no universo do Second Life. Para quem desconhece a plataforma, ele mesmo explica: “O Second Life é um mundo tridimensional online, onde construímos um personagem e o nosso próprio mundo. Tens um espaço teu onde podes colocar tudo o que quiseres e é adaptável a todos os projectos que queiras realizar.  Depois, tens uma comunidade internacional com a qual te podes ligar e interagir.” No Second Life é assim possível encontrar escolas, lojas, restaurantes, cafés, museus ou mesmo universidades que facultam cursos de ensino à distância. O próprio Hugo de Almeida já deu um workshop para a Universidade de Aveiro, via Second Life: “O Second Life é um espaço de simulação e, como tal, a imaginação é o limite. Ele dá ferramentas para criar que podem ser utilizadas de múltiplas maneiras.”  Já existia o Skype, o Messenger e alguns fóruns, mas Hugo de Almeida percebeu que este era um universo mais exigente em termos de entrega pessoal, que o faria encarar o mundo com outros olhos: “Essa é a grande diferença entre o Second Life e as plataformas Web tradicionais - a imersão que ele causa.”

Foi então que viu, pela primeira vez, um vídeo em Machinima - aquela a que muitos chamam “a arte do século XXI”. Mais uma vez, obrigamo-lo a decifrar e Hugo de Almeida explica-nos que se trata de uma forma de filmar em ambientes virtuais, cada vez mais utilizada no mundo inteiro. Na época, a arte estava limitada a um grupo de jogadores que habitualmente trocavam vídeos e jogos entre si, nunca tendo sido utilizada para uma produção audiovisual. Mas Hugo de Almeida conseguiu ter essa visão estratégica. Feitos os primeiros contactos com alguns realizadores de Machinima, decidiu fazer um vídeo de dois minutos. De uma forma inesperada, começou a ver referências ao seu nome noutros blogs e sites que o apresentavam como “o primeiro realizador de Machinima em Portugal”. Depois desse vídeo surgiram uma série de convites, entre eles o de realizar um bailado virtual patrocinado pela IBM. Apercebeu-se então que esta seria uma forma de criar sem necessitar de câmaras de filmar dispendiosas e uma imensa equipa de produção e realização, como acontece no cinema tradicional.

 Terminado o curso de Administração Pública e Autárquica decidiu continuar a estudar, mas desta vez na área que mais o realizava. Matriculou-se no mestrado de Comunicação e Multimédia, que completou com distinção, e foi imediatamente convidado para dar aulas no mesmo Instituto Superior. Mas o destino de ser o primeiro em várias áreas manteve-se. Pouco tempo depois, em 2008, realizou e produziu o primeiro programa de televisão do mundo com técnicas de Machinima- o último episódio da série Homens da Luta, transmitido pela Sic: “Foi um projecto muito enriquecedor, não só pela pressão que foi feita em termos de prazos, como pelo facto de não ter tido ninguém a quem pudesse recorrer em caso de dúvida”, afirma Hugo de Almeida (ou Halden Beaumont como é conhecido no universo virtual).

 Meses mais tarde concorreu ao festival Festroia com um filme chamado Labirinto que foi nomeado para melhor curta-metragem digital do ano: “Isso para mim foi surpreendente! O Festroia é um festival muito purista, e eu nunca pensei que eles aceitassem um vídeo filmado nos mundos virtuais, quando mais destacá-lo.” Outra produção sua, Beyond Magic, recebeu o prémio de melhor filme de 2008 feito no Second Life, no Rezzable Machinima Festival, o que lhe daria grande projecção internacional.

Passado pouco tempo foi convidado para coordenar a primeira transmissão de uma sessão do Parlamento Europeu para o mundo virtual. O evento foi reconhecido, pelo que muito rapidamente teve um novo convite para ser gestor em multimédia e comunicação de uma equipa de observadores internacionais das eleições provinciais no Iraque, com transmissão feita em directo para o Parlamento Europeu e para toda a Web (blogs, twitter, Second Life).

 Em Junho de 2009 continuou o percurso ímpar e criou, juntamente com a associação de que é presidente - Associação Comunidade Cultural Virtual (ACCV), o primeiro projecto da Presidência da República no Second Life: “A ideia foi criar uma ilha virtual onde portugueses de todo o mundo se pudessem encontrar. Ao mesmo tempo, deveria ser um espaço imersivo com pedaços da nossa História. Basicamente, foram criados vários espaços, como o Museu da Presidência, com a história e biografia de todos os presidentes, e ferramentas que permitem aceder aos canais de informação da própria Presidência. Temos também um auditório que permite, sempre que o Senhor Presidente quiser, comunicar com os cidadãos em directo. É como entrar numa sala e ver uma série de objectos em 3D, navegando e interagindo com eles.  E tudo isto fez com que o nosso Presidente fosse o primeiro do mundo inteiro a utilizar os mundos virtuais para contactar com os cidadãos. Quatro semanas depois, o Presidente Obama fez exactamente a mesma coisa”, afirma com um certo tom de orgulho justificado. Actualmente, Hugo de Almeida continua a coordenar o projecto, colaborando com a instituição em planos relativos a novas tecnologias e new media. Entretanto, foi convidado para dar aulas na University College South, na Dinamarca, e na Howest University, na Bélgica. Fundou ainda uma pequena empresa onde elabora estratégias new media para artistas e instituições portugueses e internacionais. Do seu portefólio fazem já parte nomes como Rodrigo Leão, Ana Lains, The Unthanks, João Gil ou mesmo a Valentim de Carvalho, entre outros.

 O seu último projecto é totalmente pró-bono, uma vez que acredita que os mundos virtuais também devem ser utilizados em projectos de âmbito educacional, social e humanitário. Recentemente, a associação Terra dos Sonhos (que apoia crianças com doenças em fase terminal procurando realizar-lhes os seus maiores sonhos), convidou-o para realizar o videoclip do seu hino, gravado por Luís Represas, Anjos, Rita Guerra, Maria João e Mafalda Arnauth: “É claro que eu nunca poderia recusar esta ideia e jamais cobraria por isso. Mas percebi rapidamente que este projecto só poderia ser realizado a baixo custo, e só teria riqueza multicultural, se eu pudesse usar diferentes visões dos mundos virtuais.” Assim, o vídeo que será apresentado ao público no final de Maio foi feito por uma equipa internacional: aproveitando os seus conhecimentos online, Hugo de Almeida contactou um grupo de japoneses que se prontificaram a desenhar um cenário para o videoclip; outro dos cenários utilizado foi desenhado por um polaco cartoonista; um grupo de portugueses contribuíram com mais alguns desenhos e um inglês criou uns bonecos ternurentos. A personagem principal foi desenhada por Hugo de Almeida e por uma amiga com quem trabalha frequentemente.

 À distância, frente ao computador, foi traçando este projecto que se prolongou por cerca de cinco meses: “A beleza de tudo isto é que, se tivéssemos feito um projecto nos moldes tradicionais, teríamos gasto certamente mais de 75 mil euros. Nós gastámos 300 euros, sem sair de casa, graças a toda esta equipa que se prestou a ajudar. Mas mesmo que isso não tivesse acontecido, todos os custos de produção tradicionais - como a equipa, o estúdio, o material, os transportes e a alimentação - são absolutamente anulados.” Assim, Hugo de Almeida aproveita para lançar um alerta aos jovens realizadores que anualmente saem das escolas de cinema e que se prontificaram a gastar milhares de euros nos seus primeiros filmes: “Os mundos virtuais, que dão toda esta liberdade criativa, permitem anular imensos custos de produção.”

 Para Hugo de Almeida, incontestavelmente fascinado pelas potencialidades das novas tecnologias, seria importante que algumas pessoas deixassem de encarar a Internet como uma ferramenta negativa, que pode viciar os utilizadores e anular-lhes as suas vidas pessoais: “Eu conheço pessoalmente a grande maioria dos amigos que fiz através da Internet. Saímos e tomamos café com frequência. Não somos todos indivíduos estranhos e alheados da sociedade”, garante o próprio. Na sua opinião, é importante que as pessoas percebam o imenso potencial dos mundos virtuais, que pode também passar a ser usado a favor de associações como a Terra dos Sonhos. Lá, onde todos deveríamos viver e onde “toda a gente trata a gente toda por igual”. Jorge Palma sempre o disse (e cantou).

Ana Catarina Pereira

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