Universal Concreto
Ana Catarina Pereira
A Manchester Portuguesa
Era uma vez… Assim poderia começar a história de uma cidade à beira-serra plantada. Uma das mais altas e frias do país, numa das zonas que mais sofreu com os ciclos de crise económica do século XX. Esta poderia ser mais uma história com um final infeliz, sobre a eterna devoção a uma mono-indústria ou a desertificação do interior. Mas não é. A Covilhã viveu dos têxteis desde o princípio dos tempos, mas sobreviveu graças ao ensino e à investigação. A Notícias Sábado foi à procura de testemunhas desta história viva.
A realidade dos números
Na década de 40, a indústria têxtil covilhanense viveu um período áureo, detendo 60 por cento da produção do país. Só para Angola, no ano de 1949, foram exportadas seis mil toneladas de têxteis, cifra que quase triplica em 1968 (período de maior desenvolvimento regional). Em 1950 contavam-se mais de 200 unidades industriais de dimensão média, ocupando cada uma entre 30 a 200 trabalhadores.
No entanto, esta prosperidade culminaria nos anos 70. As falências sucedem-se e o desemprego instala-se na região. Com a revolução do 25 Abril de 1974, aumenta também o número de greves. A crise agrava-se; regista-se nova fuga de capitais e, em alguns casos, o abandono das fábricas pelos próprios donos. Na época, como agora, a falta de meios tecnológicos e de quadros técnicos especializados atrasou um processo de modernização.
Na década de 80 perderam-se, na Covilhã, quatro mil postos de trabalho. Em 1983, a população activa na indústria têxtil no concelho estava reduzida a metade e a percentagem de desempregados era das mais elevadas do país (cerca de 15 por cento da população activa).
Em 1986, Portugal entra na Comunidade Económica Europeia, o que faria renascer uma esperança e entrar novos fundos comunitários. Mas analistas e historiadores afirmam que a distribuição destes fundos seria feita equitativamente, sem atender a critérios de viabilidade ou segurança das empresas subsidiadas: muitas absorveram subsídios, sem serem capazes de evitar a falência.
O parque industrial, com mais meios financeiros e melhor tecnologia, aumentava a produção e diminuía os custos, mas não resolvia o problema do desemprego. Muitos dos operários não se adaptaram às novas tecnologias, quando era urgente formar novos quadros. A indústria nacional beneficiava ainda de mão-de-obra mais barata do que a maioria dos países da CEE, mas enfrentava outras desvantagens, como a energia mais cara, as elevadas taxas de juro, a falta de mão-de-obra qualificada e a má gestão de muitas empresas.
De acordo com dados do Sindicato dos Trabalhadores do Sector Têxtil da Beira Baixa, entre os anos de 1994 a 2001, encerraram 18 empresas de lanifícios e confecções no concelho da Covilhã, deixando 1023 trabalhadores desempregados. De 2001 a 2006, encerraram 23 empresas que desempregaram 1426 trabalhadores.
Na opinião de Luís Garra, dirigente do mesmo sindicato, falar sobre o sector têxtil de hoje é falar dos seus dois mais importantes sub-sectores da região: os lanifícios, com cerca de 6 mil trabalhadores, e as confecções com cerca de 11 mil. “No entanto, é também de reflectir sobre os processos (naturais e dirigidos) que levaram ao encerramento de empresas e à destruição de postos de trabalho”, afirma o dirigente. Aos que defendem que a morte das empresas faz parte do ciclo natural da vida (que, como as pessoas, nascem, crescem e morrem) e que o encerramento é, em muitos casos, uma inevitabilidade, Luís Garra responde que importa referir um outro elemento essencial à vida: a reprodução. Como sublinha, as pessoas nascem, crescem, reproduzem-se e morrem - ciclo que gostaria de rever neste sector da região. Tal não tem vindo a verificar-se porque, na sua opinião, “o processo de reestruturação dos lanifícios adulterou as leis do mercado e introduziu factores de concorrência desleal. Se por um lado, certas empresas têm tido todo o tipo de apoios financeiros e fiscais, outras há que não tiveram apoio nenhum, o que introduziu factores de desigualdade.”
De acordo com Luís Garra, no período de vigência desta portaria encerraram 34 empresas no distrito de Castelo Branco, o que implicou a destruição de cerca de três mil postos de trabalho. O destino destes trabalhadores continua a ser o desemprego ou a reforma antecipada. Assim, distritos como Castelo Branco e Guarda são das zonas do país onde os desempregados são mais velhos e os reformados mais novos: “É triste que um homem, aos 55 anos, seja considerado um velho que é dispensável da empresa.”
O papel da Universidade da Beira Interior
Os primeiros passos a caminho do que hoje é a Universidade da Beira Interior (UBI) foram dados na década de 70, quando nasceu o Instituto Politécnico da Covilhã (IPC), em 1973. Face à grave crise então sentida, e no âmbito das actividades do grupo de trabalho para o Planeamento Regional da Cova da Beira, surgiu a ideia de criar na região uma instituição de ensino superior, de forma a facultar aos seus residentes a possibilidade de prosseguirem os estudos sem terem de se deslocar para outros pontos do país, a maioria das vezes a título definitivo. Assim, no quadro da chamada “Reforma Veiga Simão”, que deu lugar à expansão e diversificação do Ensino Superior, foi criado o IPC. Em 1975 recebeu os primeiros 143 alunos, nos cursos de Engenharia Têxtil e Administração e Contabilidade. A conversão em universidade veio a acontecer em 1986.
Uma das características físicas mais interessantes da UBI resulta da recuperação de antigos edifícios, de valor histórico, cultural e arquitectónico. Ao mesmo tempo que se preservaram marcos da cidade, estes foram revitalizados em espaços vocacionados para o ensino e para a investigação. À data da sua fundação, ainda como Instituto, a UBI foi instalada no edifício da antiga Real Fábrica de Panos. Durante o processo, foram descobertas, soterradas, estruturas arqueológicas que pertenciam às tinturarias da fábrica, bem como uma importante manufactura de lanifícios mandada construir no século XVIII, pelo Marquês de Pombal. Após duas campanhas de intervenção arqueológica, foi criada a estrutura que deu lugar ao primeiro núcleo do Museu de Lanifícios da UBI, aberto ao público em 1996.
Foi assim que as antigas edificações fabris, localizadas na entrada Sul da Covilhã, se transformaram num centro de ensino e investigação que recuperou os edifícios abandonados e em ruínas, que constituíam parte significativa do património industrial da cidade. Na década de 90, os dirigentes optaram por expandir a universidade para o extremo Norte da cidade, junto à Ribeira da Carpinteira. Já em 2006, concluiu-se a construção da Faculdade de Ciências da Saúde, onde o curso de Medicina começou a ser leccionado no ano lectivo de 2001/2002.
A palavra dos professores
Maria do Céu Alves, docente do departamento de Economia e Gestão, defende precisamente esta relação entre o ensino superior e a universidade. Na sua opinião, os mais recentes desenvolvimentos no âmbito da ciência e da tecnologia exigem uma maior participação de todos, nomeadamente do ensino superior, no processo de qualificação de mão-de-obra. Sublinhando que vários estudos europeus já comprovaram a existência de uma relação entre o nível de produtividade e o nível educativo da população, Maria do Céu Alves reafirma a “necessidade de adequação entre o processo educativo e as necessidades do tecido económico”. A docente defende ainda que, apesar da diminuição generalizada do número de trabalhadores do sector têxtil na região, se tem verificado um aumento da contratação de diplomados, oriundos essencialmente desta universidade.
Também Luísa Rosado, docente da Faculdade de Medicina, sublinha a importância de da universidade no contexto em que se encontra: “Nota-se que a cidade gira muito em torno da universidade. Os próprios comerciantes assumem que muitos dos seus clientes são professores e alunos.” Especialista em Neurologia e doutorada pela Universidade de São Paulo, Luísa Rosado encontra-se a viver em Portugal há cerca de 20 anos. Em 2005 aceitou o convite para dar aulas na recém-criada Faculdade de Ciências da Saúde. Cansada do constante stress e trânsito de Lisboa, onde então vivia, não pensou duas vezes antes de fazer as malas e vir morar para a Beira Interior: “Primeiro que tudo, tinha uma grande vontade de prosseguir o meu percurso académico, dando aulas numa universidade. Depois, considero este método de ensino bastante inovador, já sendo aplicado em universidades de Espanha e dos Estados Unidos. Aqui, os alunos trabalham por módulos e objectivos, sendo compelidos e responsabilizados por grande parte da aprendizagem.” Na sua opinião, os pontos fortes desta cidade prendem-se com a segurança nas ruas, a ausência de filas de trânsito e a simpatia com que as pessoas de fora são acolhidas. O nível de vida, comparativamente ao das grandes cidades, é também mais barato: “sobretudo em termos do preço das habitações ou das rendas”, acrescenta.
A opinião dos alunos
Actualmente, a UBI acolhe mais de seis mil alunos, distribuídos por cinco faculdades: Artes e Letras, Ciências, Ciências da Saúde, Ciências Sociais e Humanas e Engenharia. Jeanete Rocha é aluna de mestrado em Cinema. Natural da Quarteira, não temeu viajar mais de 500 quilómetros para prosseguir os seus estudos, após ter completado o ensino secundário. A viver na Covilhã há cinco anos, não se arrepende da decisão tomada: “Escolhi vir para a UBI por este ser o único curso superior de Cinema leccionado numa universidade. Também havia o curso do Conservatório, em Lisboa, mas aí não teria tantas ajudas. Quando vim estudar para cá fui bem recebida pelas pessoas da região e pude mesmo ir viver para uma residência universitária.”
Declaradamente anti-praxe, Jeanete Rocha reconhece que o ambiente académico aproxima os vários estudantes que vêem de outras zonas do país e que se encontram longe das famílias: “Quando entrei, tinha apenas dois colegas da Covilhã; éramos quase todos de fora, e isso fez com que nos identificássemos mais.” Quando lhe perguntamos que conselho daria a um estudante que pense inscrever-se nesta universidade, a resposta é imediata: “Que tire a carta de condução! A Covilhã está bem servida de transportes internos; mas, para sairmos daqui e irmos ver um espectáculo ao Fundão ou à Guarda, não existem transportes públicos.” Cinéfila e eterna dependente da vida cultural, Jeanete sente falta deste aspecto na cidade em que vive: “Os cinemas passam poucos filmes não-comerciais e há poucos espectáculos de música, teatro ou de outras artes.”
Também Rui Cunha, aluno de Engenharia Informática, partilha da mesma opinião: “Temos o Lago dos Cisnes uma vez por ano, ou o Quebra-Nozes, mas mais nada. Tanto o Fundão como a Guarda têm programações culturais muito mais interessantes. O problema é chegarmos lá.” Apesar das dificuldades registadas, Rui Cunha, natural de Guimarães, gosta da cidade onde estuda. Adepto das praxes e membro da tuna “Já b’UBI e Tokuskopus”, é fã incondicional do ambiente académico que por aqui se vive. Nas muitas saídas à noite, aprecia o convívio entre alunos de todas as regiões do país, que se encontram nos cafés, restaurantes e bares da cidade: “Também é muito bom poder andar à noite na rua, sozinho, e completamente à vontade. Esta cidade é muito segura. Nunca acontecem assaltos, nem nada parecido.” Por outro lado, Rui Cunha sublinha um último aspecto que considera importante: “Viver na Covilhã é muito mais barato do que viver em Lisboa ou no Porto. Aqui paga-se cerca de 100 a 150 euros por um quarto de estudante, enquanto lá se paga 200 a 250.”
O comércio tradicional
Para os comerciantes da zona, a universidade é um dos grandes públicos-alvo. Que o diga Júlio Marques, proprietário da papelaria e centro de cópias Nova Forma. Aberto há mais de dez anos, este é um dos estabelecimentos mais frequentados por alunos e professores: “Por dia, entram aqui mais de 300 pessoas da universidade”, sublinha com orgulho. Num espaço dividido por dois pisos, encontra-se um centro de cópias que também vende todo o tipo de artigos de papelaria, material académico (fitas, emblemas e pins) e algum material informático. Próximo do edifício central da universidade, a loja estabelece ainda a ponte entre os alunos que pretendam comprar o tradicional traje académico e uma fábrica da região (as Confecções Craveiro).
Ex-professor da própria universidade, há dez anos que Júlio Marques decidiu abrir este espaço onde actualmente trabalham duas funcionárias a tempo inteiro e uma em regime de part time. Na sua opinião, o futuro do comércio tradicional nas pequenas cidades passa precisamente pela especialização. Na Covilhã, este é um centro de cópias com localização privilegiada, exemplo do tipo de pequena empresa criada para satisfazer algumas necessidades específicas de alunos e professores da universidade.
Por sua vez, também Cristina Azevedo, optometrista e proprietária de vários centros ópticos da cidade, deve grande parte do seu sucesso profissional à própria UBI: “Em primeiro lugar, tirei cá o meu curso e o meu marido, que é meu sócio, também foi dos primeiros alunos da universidade.” Terminadas as licenciaturas, ambos aceitaram propostas de trabalho em Lisboa. Alguns anos passados, e acumulada a experiência que consideraram necessária, decidiram aventurar-se num negócio próprio. Regressaram às origens e, em 1997, montaram a primeira óptica do grupo que hoje detêm: o Centro Óptico da Covilhã. Para além de trazer novos habitantes à cidade, a universidade fixa assim, simultaneamente, alguns antigos alunos na terra de origem.
À semelhança das restantes lojas de comércio tradicional da cidade, Cristina Azevedo afirma que o Centro Óptico tem diversos clientes da universidade: “São sobretudo os nossos antigos professores e muitos alunos do curso, os que mais gostam de vir aqui. Sabem que somos um pouco ‘filhos da UBI’ e identificam-se com isso.” Desde a década de 90, a optometrista afirma ter vindo a assistir a um grande crescimento da própria universidade, que também é sentido no aumento do volume de vendas: “Há cada vez mais professores vindos de fora, e alunos na mesma situação. A vinda da faculdade de Medicina também foi um passo importante nesse sentido.”
Uma história com final feliz, para contrariar as manchetes habituais. Uma viagem ao interior do país, onde muitos continuam a gostar de viver.
A origem deste universo
Uma vez que o crescimento da Covilhã e o desenvolvimento da própria cidade-fábrica são simultâneos, torna-se difícil apontar uma data certa para o aparecimento da indústria nesta região. Diversos historiadores referem, no entanto, os primeiros tempos da monarquia como o período mais provável, sendo que as próprias condições geográficas propiciaram todo o seu desenvolvimento.
- A Covilhã, situada na Beira Baixa, é circundada por duas ribeiras - Carpinteira e Goldra - que desde sempre forneceram água adaptável ao tratamento das lãs e que, mais tarde, auxiliaram os inventos hidráulicos da indústria. A criação de gado lanígero na Serra da Estrela foi também um factor essencial (diz-se que Viriato foi pastor nos montes Hermínios).
- 1186: O Foral concedido por D. Sancho I à vila da Covilhã demonstrava já a importância económica da região. Com o intuito de povoar e fixar populações na região, foram concedidos inúmeros privilégios aos seus habitantes. A indústria dos lanifícios era então, como o foi até muito tarde, uma indústria caseira, encontrando-se por toda a parte onde se criasse o gado lanígero. Era adágio conhecido que se todos os “filhos de Adão pecaram, todos os da Covilhã cardaram.” À semelhança dos trapeiros e dos senhores dos engenhos de tinturaria, também os tecelões e mercadores exerciam a indústria. Compravam as lãs que manufacturavam por conta própria no seu tear doméstico ou oficina, seguindo-se as restantes transformações em oficinas alheias. O tecido era posteriormente entregue por grosso ao mercador ou vendido a retalho nas feiras do reino.
- 1573: D. Sebastião funda, no lado Norte da Ribeira da Carpinteira, a Fábrica D’El Rei. A primeira empresa têxtil da Covilhã foi considerada a melhor do país. Nela se fabricaram os primeiros padrões destinados a outras fábricas do reino, como as de Portalegre e Estremoz.
- 1703: A 27 de Dezembro a prosperidade do sector seria contrariada pela assinatura do Tratado de Methuen. A proibição da entrada de tecidos estrangeiros em Portugal foi abolida e as encomendas do sector fortemente diminuídas. Ainda assim, a indústria continuou a desenvolver um papel social e educativo importante, uma vez que se criaram inúmeras escolas de fiação nas freguesias limítrofes da Covilhã e do Fundão - Alpedrinha, Castelo Novo, Donas, Penamacor ou Souto da Casa. Muitos aprendizes eram crianças órfãs ou abandonadas, entre os 8 e os 12 anos, que entravam para a Real-Fábrica de Panos em regime de internato por um período de cinco anos, sendo posteriormente contratadas.
- 1870: A Covilhã é elevada a cidade e passa a ser identificada com o pomposo nome de “Manchester portuguesa”. Já no século XX, ao contrário do que seria de esperar, a II Guerra Mundial correspondeu a uma fase de grande prosperidade do sector. A corrida ao armamento e a procura de fardas militares fizeram com que a região, rica em volfrâmio, lã e fazendas, entrasse numa fase de maior prosperidade.
Ana Catarina Pereira