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Amigos deprimidos

Ajudar ou ficar de braços cruzados?

 A Organização Mundial de Saúde considera que esta é a grande epidemia do século XXI. Afecta 20 por cento da população portuguesa e é responsável por 1200 mortes todos os anos. O que fazer quando um amigo ou familiar está a passar por uma situação destas? Saturá-lo com perguntas? Fazer de conta que nada se passa? Desafiá-lo para uns copos ou esperar que o “ataque de preguiça” lhe passe? A Focus foi à procura das respostas dos especialistas.

 

 

A experiência na primeira pessoa

 Foi no dia 15 de Fevereiro de 2008, às 18h30 de um dia de Inverno rigoroso, que Mafalda Silva soube o diagnóstico. Tinha percorrido os 300 quilómetros que separam Lisboa do Porto com o conta-quilómetros sempre acima dos 150, o que lhe chegou a valer uma multa por excesso de velocidade. Com o stress acumulado de um ano que parecia estar a ser o mais negro da sua vida, entrou no consultório do médico de família. Na mão levava apenas um envelope com análises de rotina, esperando sair dali em poucos minutos, como tinha sido costume ao longo dos seus saudáveis 28 anos de vida. Mas desta vez não foi assim.

 “Como é que te sentes Mafalda?” À pergunta (aparentemente) simples do seu médico, a paciente respondeu com um choro compulsivo. Alguns minutos depois, mais calma, explicou que não era a primeira vez que isto acontecia, e que nos últimos tempos os episódios de derramamento de lágrimas se vinham a somar com demasiada frequência. O médico, que a conhecia desde os seis anos, soube que Mafalda não estava bem e reencaminhou-a de imediato para um colega psiquiatra. Os sintomas eram evidentes: “andava muito cansada e irritada, a minha memória estava sempre a falhar e chorava… chorava muito!”

 Quando o psiquiatra lhe diagnosticou uma depressão, não conseguiu evitar uma surpresa inicial, seguida de uma consciencialização que a fez recordar acontecimentos difíceis. O seu melhor amigo tinha morrido há cerca de um ano, trabalhava mais do que nunca e vivia agora, pela primeira vez, longe da família. Apuradas as causas, e realizado o diagnóstico, o médico informou Mafalda que iria ficar um mês e meio de baixa, em casa. À sua volta, familiares, amigos e namorado ficaram incrédulos. Estavam habituados a uma Mafalda expansiva, reivindicativa e teimosa, sem qualquer sombra de tendências depressivas. A própria profissão era contrária ao seu estado: Mafalda é animadora de rádio e, no ar, logo pela manhã, é a pessoa certa para despertar os ouvintes mais sonolentos. Para alguém que costumava andar a cem à hora, e animar festas e jantares com amigos, esta situação era improvável. No entanto, acabou por acontecer, e ter de ser encarada com naturalidade: “As pessoas que estiveram presentes trataram-me simplesmente como ‘a Mafalda’. Estava doente, e falávamos frequentemente nisso. Mas a doença era apenas uma parte de mim. Tinha tantas outras: eu era, e sou, tia, animadora de rádio, amiga, mulher, filha, namorada...” Facetas que a ajudaram a reassumir as suas prioridades e a dar valor ao que de melhor tinha na vida.

 Em casa, de baixa, o apoio das pessoas de quem mais gosta acabou por ser determinante: “A minha família é a típica família italiana de Portugal (risos). Todos se metem em tudo, dão palpites, ajudam - sempre, e não apenas quando é preciso. Mas a medalha de ouro vai para o meu ex-namorado, que foi incansável. Mesmo a três horas de distância física, fazia-me sentir mais perto dele do que nunca.” Passados mais de dois anos, Mafalda considera que o facto de todos terem cumprido o seu papel com distinção, sem mostrarem piedade ou uma preocupação excessiva, a ajudou a ultrapassar o seu próprio preconceito: “Uma baixa psiquiátrica levanta sempre algumas questões, mesmo a alguém com uma mentalidade aberta. Naquela altura não conseguia deixar de pensar ‘estarei maluquinha?’.”

 Quanto ao tratamento, após uma recusa inicial, a animadora de rádio acabou por aceitar ser medicada com anti-depressivos: “Hoje em dia já consigo admitir isso, sem problemas e com a convicção de que foram muito importantes!” O acompanhamento médico ainda hoje se mantém: “Para mim isso é essencial, de preferência com um profissional desconhecido, com quem possamos falar abertamente dos nossos problemas e angústias, mas também das alegrias e das vitórias. Actualmente vou à psicóloga quando sinto necessidade e a minha conta bancária permite. Sim, nada disto é barato... Mas enriquece a alma, alivia. Faz-nos seguir em frente, de cabeça erguida.” Com um ritmo de trabalho menos intenso, Mafalda esforça-se agora por viver um dia de cada vez, saboreando alguns prazeres da vida a que reaprendeu a dar valor. Apesar disso, mantém-se atenta: “Um ex-fumador nunca o é. Eu também tenho recaídas diárias, de nanossegundos. A depressão fará sempre parte de mim - está no meu disco rígido. Eu enviei-a para a reciclagem, mas ela está sempre presente, como um vírus.”

 

O papel dos amigos e familiares

 No caso de Mafalda, o namorado, a família e os melhores amigos revelaram-se essenciais durante todo o processo de tratamento. Em entrevista concedida à Focus, a psiquiatra e grupanalista Ana Nava sublinha a importância destas pessoas na evolução de casos clínicos. Segundo afirma, no caso de detecção de alguns dos sintomas associados à doença (ver caixa), é necessário conversar com a pessoa e encaminhá-la para o médico psiquiatra, destruindo quaisquer preconceitos relativamente a estes profissionais de saúde. Ao psiquiatra caberá então a tarefa de avaliar o doente e realizar o diagnóstico apropriado.

No entanto, como reforça a especialista, a intervenção de amigos e familiares não termina aqui. A ida a uma primeira consulta é apenas o início de uma longa caminhada, uma vez que nenhum tratamento é eficaz num curto espaço de tempo. Nestes casos, a psiquiatra aconselha: “Deve-se aguardar com serenidade o efeito da medicação. Aqui, a paciência é uma arte fundamental. Não se deve forçar o doente a divertir-se, a sair para a rua, a ir ao cinema ou ao centro comercial. Essas não são, de todo, as soluções do problema, para além de poderem revelar-se muito frustrantes.” Por outro lado, recorrendo a exemplos práticos, Ana Nava relembra: “Não se pode obrigar um homem com uma perna partida a jogar futebol. No entanto, quando ele estiver recuperado, claro que o poderá fazer. O mesmo se passa com a depressão - é importante levar a sério o paciente e compreender que a depressão é uma doença e não uma falta de força de vontade do indivíduo.”

 Foi desta forma que Manuel Ferreira tentou reagir quando, há cerca de um ano, a namorada começou a apresentar sintomas de depressão. No entanto, e apesar destes, não conseguiu evitar uma surpresa inicial no momento em que soube o diagnóstico: “Eu sabia que as coisas não estavam bem, mas nunca suspeitei que pudesse ser algo potencialmente tão grave”. Na origem da doença terão estado uma série de problemas pessoais e profissionais que prefere não especificar: “Ela andava muito cansada, irritada, pessimista, derrotista. Estava sempre de mau humor e com a auto-estima muito em baixo”. Passados alguns meses de ataques de choro inesperados e de muito cansaço, acedeu em consultar um especialista: “Foi uma decisão dela, mas acredito que tenha sido bastante duro reconhecer a necessidade ajuda médica.”

 O primeiro passo, segundo Manuel Ferreira, terá sido o mais difícil, tendo sido constantemente repetido ao longo dos meses: “A minha namorada nunca desistiu do tratamento; gostou da médica e aceitou a medicação. Agora, sempre que ela vai a uma consulta, o que acontece mais ou menos de seis em seis semanas, ligo para saber como correu. Vou tentando estar atento, e por vezes até sou eu que a lembro de tomar o comprimido depois de jantar.” Actualmente, tanto Manuel como a namorada consideram essencial que o acompanhamento médico seja mantido, de forma a prevenir episódios que potenciem uma recaída ou uma estagnação da recuperação. No entanto, apesar de estar presente nos momentos mais críticos, Manuel não consegue definir a importância que teve no tratamento da sua “mais-que-tudo”: “Não sei… Apenas sei que a maior parte da recuperação dependeu exclusivamente dela, da sua vontade e da sua determinação.” Seja como for, por casualidade ou intuição, parece ter seguido o procedimento correcto: “Procurei dar-lhe espaço, respeitar a sua privacidade e mostrar-lhe a minha confiança na sua recuperação. Procurei ajudar na melhoria da sua auto-estima e na valorização das coisas positivas de que ela dispunha à volta. Também tentei ajudá-la a gerir de forma mais racional e relativa as expectativas e as frustrações do quotidiano.”

 Olhando para o caso particular da sua namorada, e generalizando um pouco, Manuel Ferreira considera que esta é, certamente, uma das mais graves epidemias do novo século: “A depressão beneficia da precariedade das condições de vida, do aumento do stress nas relações laborais e da deterioração das relações humanas. E isso, infelizmente, é o nosso quotidiano.”

 

A doença do século

 Para a psiquiatra Ana Nava a definição de depressão como a doença do século XXI é algo exagerada, uma vez que esta sempre terá existido: “Basta haver cérebro para poder existir este tipo de doença. No entanto, é verdade que, actualmente, existe uma maior capacidade de diagnóstico, e as pessoas estão mais sensibilizadas para o problema, recorrendo ao médico com mais frequência. Outro factor importante tem a ver com a capacidade de tratamento da depressão, que melhorou substancialmente nos últimos tempos. Para além disso, as pessoas vivem actualmente numa sociedade mais exigente e competitiva a nível profissional, e com uma menor rede de suporte social e familiar, o que contribui para o desenvolvimento da doença.”

 Por todos estes motivos, este é o caso mais frequente entre os pacientes que se dirigem à clínica de Ana Nava. Como nos explica, a depressão é uma doença associada a uma predisposição genética, despoletada por factores psico-sociais. Estes últimos podem ter a ver com determinadas situações traumáticas que ocorreram na infância do paciente, ou com o stress do dia-a-dia: “É claro que, nalgumas pessoas, a predisposição genética é tão importante que basta que alguns factores stressantes da vida actual se associem para provocar uma grave depressão.”

 Quanto à suposta maior prevalência de casos no sexo feminino, a psiquiatra manifesta algumas dúvidas: “Os dados estatísticos apontam para isso. No entanto, muito provavelmente, alguns casos de depressão nos homens acabam por ter outro diagnóstico, como seja o de alcoolismo - muito frequente no nosso país e, de algum modo, socialmente mais aceite.”

 

A definição clínica de depressão

 “Um cérebro deprimido não funciona a 100 por cento. É um cérebro lento e enferrujado”, considera Ana Nava. Em casos de depressão, como nos explica, os processos de funcionamento intraneuronais (e os próprios circuitos neuronais) estão alterados, pelo que a habitual capacidade de regeneração cerebral deixou de existir: “Ao contrário do que se acreditava até há bem pouco tempo, o cérebro é um órgão que se continua a regenerar ao longo da vida. No entanto, ele perde esta capacidade se for afectado pela depressão, e daí a sua associação à demência cerebral.” Desta forma, tratar uma depressão é fundamental não só pela melhoria da situação presente do paciente, mas também para evitar a sua degeneração futura.

 Em termos de tratamento, após ter sido feito o diagnóstico, o psiquiatra tem ao seu dispor algumas armas terapêuticas. Uma delas será precisamente a prescrição de fármacos antidepressivos, possivelmente associados a uma psicoterapia intensa: “São medicamentos extremamente eficazes, que não dão habituação nem dependência e que actualmente têm muito poucos efeitos secundários, o que permite que o paciente consiga manter a sua vida activa, tanto a nível profissional como familiar (e estou a pensar, por exemplo, no caso de mulheres com filhos pequenos)”, afirma Ana Nava. Na sua opinião, estes fármacos vão permitir um reequilíbrio químico, iniciar um processo de reestruturação cerebral e prevenir uma eventual demência futura.

 O processo é complexo e moroso, sendo que a medicação demora uma a duas semanas para começar a fazer efeito. Para além disso, num primeiro episódio de depressão, a especialista costuma prescrever um tratamento mínimo de seis a oito meses, de modo a evitar recaídas. Como sublinha, de acordo com dados estatísticos da Organização Mundial de Saúde, uma em cada duas pessoas que tiveram um primeiro episódio depressivo irá ter uma recaída. Das que tiveram um segundo episódio, cerca de 70 por cento terá um terceiro. Este será portanto um ciclo vicioso, caso não seja quebrado a tempo. A depressão afirma-se como uma doença contemporânea grave, fruto dos dias que correm demasiado depressa, sem tempo para dedicar às coisas realmente importantes.

 

Segundo dados do Ministério da Saúde, a depressão:

- Afecta 20 por cento da população portuguesa;

- É a principal causa de incapacidades e a segunda causa de perda de anos de vida saudáveis entre as 107 doenças e problemas de saúde mais relevantes;

- Pode afectar pessoas de todas as idades, desde a infância à terceira idade e, se não for tratada, pode conduzir ao suicídio, uma consequência frequente da depressão. Estima-se que esta doença esteja associada à perda de 850 mil vidas por ano, mais de 1200 mortes em Portugal.

- Uma em cada quatro pessoas em todo o mundo sofre, sofreu ou vai sofrer de depressão;

- Um em cada cinco utentes dos cuidados de saúde primários portugueses encontra-se deprimido no momento da consulta;

- É mais comum nas mulheres do que nos homens: um estudo realizado pela Organização Mundial de Saúde, em 2000, mostrou que a prevalência de episódios de depressão unipolar é de 1,9 por cento nos homens e de 3,2 por cento nas mulheres.

 

Quais os sintomas?

De acordo com a psiquiatra Ana Nava, os sintomas são registados a três níveis:

 1. Os que afectam o cérebro emocional: humor depressivo, ansiedade, angústia, choro fácil, falta de prazer, desinteresse, desmotivação, isolamento social, falta de energia anímica, irascibilidade e explosões de fúria.

 2. Os que afectam o cérebro cognitivo: diminuição da atenção, da concentração, do raciocínio e da memória; dificuldade em tomar decisões, aparecimento de ideias pessimistas e desajustadas da realidade, frequentemente acompanhadas de ideias suicidas.

 3. Os que afectam o controlo efectuado pelo cérebro ao corpo físico: neste caso todos os órgãos e sistemas podem ser afectados, causando problemas de hipertensão, cansaço físico, perda de peso, anorexia, insónia, cefaleias, mialgias, alterações gastrointestinais, alterações cutâneas, alterações da função sexual e reprodutora, diminuição da imunidade com viroses e outras infecções frequentes.

 

Como prevenir?

- Apesar de não se poderem controlar os factores genéticos que contribuem para a depressão é possível tentar melhorar os factores psico-sociais que envolvem o crescimento das crianças e modelam a formação da sua personalidade. Para a psiquiatra Ana Nava, este é um esforço que tem vindo a ser feito por pais e professores, cada vez mais atentos e sensíveis ao ambiente afectivo em que as crianças se desenvolvem.

- Ao nível dos factores de stress na idade adulta, a especialista considera que as instituições e empresas deveriam estar mais atentas ao nível de exigência e pressão a que submetem os seus profissionais: “Se os níveis de produtividade actual forem demasiado esticados, isto provocará certamente uma baixa produtividade no futuro, devido ao aparecimento de distúrbios de ansiedade e depressão. É claro que os tempos de crise só pioram estas condições, mas há que ter uma visão para o futuro e não estragar o potencial de vida que existe na nossa população activa.”

Electroestimulação combate a depressão nos EUA

 Para os casos em que a medicação teima em não funcionar ou os efeitos secundários desta se tornam insuportáveis, cientistas americanos da Universidade de Califórnia criaram um método inovador, que ainda se encontra em fase experimental. Fixando eléctrodos no rosto do paciente, os cientistas procuram produzir uma estimulação diária dos nervos trigémeos. Estes irão funcionar como uma espécie de ponte para os estímulos eléctricos, transmitindo-os às regiões do cérebro mais afectadas pela depressão. Prevê-se que sejam capazes de compensar os sinais neuronais irregulares, combatendo os efeitos da doença e permitindo que o cérebro retorne a sua actividade normal. Através deste método, denominado TNS - Trigeminal Nerve Stimulation, os cientistas prometem um tratamento mais rápido e uma redução da medicação.

 O estimulador é do tamanho de um telemóvel, com dois fios que são passados por baixo das roupas do paciente e colados ao rosto com adesivos. Na Califórnia, já foi testado em cinco voluntários, anteriormente medicados com anti-depressivos incapazes de reverter a doença. Para tal, os voluntários cumpriram o novo tratamento na sua totalidade: em oito semanas usaram o aparelho durante oito horas de sono diárias prescritas. Os primeiros resultados foram promissores, mostrando a redução dos sintomas da depressão em 70 por cento.

 Ian Cook, professor da Universidade de Califórnia e coordenador do estudo, acredita que o sistema já pode ser usado como método complementar. Recorde-se ainda que este método não é inteiramente novo, e que a própria Universidade da Califórnia já tinha sido pioneira no uso de sistemas de electroestimulação para curar pacientes com epilepsia. Nos próximos meses esta equipa irá testar o TNS em mais voluntários, esperando brevemente poder vir a divulgar novos resultados.

 

Mais informações em:

http://www.depression.ucla.edu/

Ana Catarina Pereira

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