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A doença da mentira

 

 Ana Nava é psiquiatra e grupanalista. Dirige a Clínica Tágide, em Lisboa, é mestre em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa e autora dos livros O cérebro apanhado em flagrante e Na Sala dos Espelhos. Quando questionada sobre a existência de uma doença designada como “mentira compulsiva”, afirma que tal não figura nas classificações de saúde internacionais: “o que existe, basicamente, são circunstâncias em que as pessoas podem mentir. Numas é até adequado que o façam, enquanto noutras não.”

A mentira socialmente correcta

 Dividindo a sua teoria em dois segmentos, Ana Nava considera que a mentira tem um significado distinto nas crianças, habitualmente relacionado com uma tentativa de chamada de atenção ou de provocação dos pais. A especialista defende que se esteja particularmente atento a estes casos, podendo, em última instância, tratar-se de fenómenos depressivos.

 Já nos adultos, Ana Nava afirma que os comportamentos diários são ditados (ou limitados) por uma tradição judaico-cristã que valoriza, em qualquer situação, a revelação da verdade. No entanto, e como já havia referido anteriormente, há circunstâncias em que considera adequado mentir, como em situações de guerra, de relação afectiva ou familiar. Relembrando o filme A vida é bela de Roberto Benigni, em que o pai se vê obrigado a mentir ao filho quando sabe que está prestes a morrer, a especialista considera que, numa situação como esta, seria profundamente desadequado dizer-lhe a verdade: “Isto pode entrar em conflito com a nossa formação, que nos diz que mentir é pecado, mas há situações em que é realmente necessário.” Para referir mais alguns exemplos, Ana Nava afirma que, por vezes, é necessário mentir ao chefe de trabalho, bem como àqueles de quem mais gostamos: “Há pessoas que fazem questão de se definir como muito sinceras, mas que agridem tremendamente os outros, sem necessidade nenhuma. Há coisas que não é preciso dizer, nem aos amigos, nem aos namorados, nem aos companheiros.”

 Também ao nível das relações pessoais, Ana Nava acrescenta que muitas pessoas fazem questão de contar todo o seu passado amoroso ao novo companheiro/a, de cada vez que iniciam um novo relacionamento: “Asneira! Sobretudo quando se trata de pessoas bastante ciumentas. Isso é uma situação perfeitamente inadequada, que só faz aumentar as incertezas e inseguranças do outro e que não contribui em nada para a construção da nova relação.” Mesmo em casos de relações extra-conjugais, a especialista defende que a verdade nem sempre deve ser revelada: “Porque é que as pessoas têm necessidade de contar ao marido ou à mulher que têm outra pessoa? Apenas para aliviar a consciência, mas isso não vai ajudar em nada.  Há coisas que acontecem e que têm pouco ou nenhum significado; enquanto outras, mais importantes, acabam por prevalecer.” Mesmo que esta seja uma estratégia usada para rompimento da relação, Ana Nava considera que o método utilizado não é o mais correcto. Neste caso, a revelação da verdade apenas contribuirá para magoar o companheiro traído: “O outro até pode desconfiar, mas tem o direito de não saber. As relações podem ser úteis e produtivas mesmo que as pessoas não contem tudo. Há que avaliar os contextos. Também não estou a dizer que se deve mentir em tudo”, sublinha a psiquiatra.

 

 

O ultrapassar dos limites

 Clinicamente, existem vários distúrbios associados à ocorrência de mentiras. De acordo com a sistematização de Ana Nava, as simulações nas quais uma pessoa finge uma doença para obter ganhos externos (como fugir à tropa ou ser dispensado de outras actividades físicas), são um exemplo. Paralelamente, existem também “distúrbios factícios” ou o denominado síndrome de Münchausen. Nestes casos, e ao contrário dos primeiros, as pessoas simulam doenças tendo em vista um ganho interno (o de serem cuidados), chegando a ser internadas, ou mesmo intervencionadas cirurgicamente, sem que se consiga apurar qualquer doença. O síndrome pode afectar directamente o próprio, ou ser impingido a outro, como nos casos de mães que simulam doenças nos filhos, para que cuidem deles. Na opinião de Ana Nava, “o principal problema é que a mentira inicialmente é consciente, mas depois as pessoas começam a acreditar naqueles disparates todos.” Elaborando uma comparação assumidamente exagerada, afirma que estas situações são semelhantes às dos psicopatas, que nunca procuram, de livre vontade, tratamento psiquiátrico: “Eles não têm qualquer tipo de culpabilidade ou sofrimento, portanto não têm motivo para ir ao médico. Quando os começamos a tratar, é porque eles estão presos e são obrigados a isso.”

 Um outro tipo de mentira, vulgarmente conhecida como histeria, é clinicamente designada por “distúrbio dissociativo”. Como sublinha Ana Nava, existem processos inconscientes aos quais o mentiroso pode estar sujeito. Como exemplo, cita o caso de uma mulher que, ao ver o marido traí-la, fica subitamente cega: “Ela não tem nada no olho, mas recusa-se a ver aquilo que viu e inicia todo um processo de cegueira histérica. A pessoa não faz de propósito para mentir, mas inconscientemente está a fabricar uma mentira - para não ver, para fugir do conflito e para se adaptar à nova situação.”

 Por sua vez, as situações ligadas ao consumo, como o alcoolismo, a toxicodependência e os distúrbios alimentares, estão habitualmente relacionadas com a mentira: “Aí, o problema nem é propriamente a mentira, mas sim a dependência, que tem que ser tratada. A pessoa mente para dizer aos outros que não bebeu, que não voltou a consumir drogas ou que, por exemplo, já jantou.” Os doentes esquizofrénicos, com alterações cerebrais evidentes, estão também associados a uma interpretação errada da realidade, em termos de alucinações e delírios. Particularmente difícil de enfrentar por parte de familiares e amigos, Ana Nava sublinha que, por definição, um delírio é alheio a qualquer forma de racionalidade, pelo que não deve ser contrariado.

 

 

Um retrato português

 Para Ana Nava, os portugueses não são particularmente aldrabões ou mentirosos, sobretudo pelo facto de se encontrarem limitados por valores judaico-cristãos. Em comparação, considera que os povos da América Latina mentem com mais frequência: “Isso é uma questão cultural, eles atribuem um valor diferente à mentira. Por outro lado, o próprio contexto económico apela a isso: em situações mais difíceis, as pessoas podem ser obrigadas a mentir mais, para manter um emprego, para dar de comer aos filhos…”

 Em Portugal, particularmente, a especialista considera que existem algumas personalidades teatrais ou estereónicas. Dotadas de um vincado sentido de humor, são pessoas habitualmente exageradas, que fazem questão de chamar a atenção do público à volta. Segundo afirma, todos nós conhecemos um caso: “São pessoas que, em termos sociais, fazem uma noite muito engraçada. Contam histórias e são muito divertidas...” Na opinião de Ana Nava, estas pessoas agradam aos outros essencialmente por serem capazes de desenvolver uma realidade paralela, mais apetecível do que o dia-a-dia comum: “O problema é que, no modo exagerado que têm de viver a vida, acabam por acreditar naquilo que dizem”. Mas aparentemente, e a julgar pelo que dizia Teixeira de Pascoaes, não haverá muito a fazer. Na opinião do escritor, “a mentira é mesmo a base da Civilização Moderna.”

Ana Catarina Pereira

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