top of page

Carlos Lopes

Vencer obstáculos

 “Um vencedor é feito de perseverança, disciplina e uma ambição razoável, que não lhe permite passar por cima dos outros!” Quem o diz é Carlos Lopes, o atleta paraolímpico português mais medalhado de sempre.

 Aos 41 anos já conquistou quatro medalhas de ouro e uma de bronze nos Jogos Paraolímpicos. Para além disso, perdeu a conta aos troféus alcançados em competições nacionais e internacionais. Mas nós não nos deixámos vencer pela vastidão do curriculum e somámos tudo: nos campeonatos do Mundo Carlos Lopes foi premiado com nove medalhas de ouro, quatro de prata e três de bronze. Nos campeonatos da Europa conquistou dez medalhas de ouro, oito de prata e três de bronze. Um vencedor nato que soma mais medalhas do que qualquer atleta olímpico português, embora não se sinta confortável com este tipo de comparações: “Acho que não fazem sentido. Só gostaria que os atletas paraolímpicos tivessem as mesmas condições que os atletas olímpicos; que também pudessem treinar duas vezes por dia e que fossem verdadeiros profissionais do desporto.” Com tristeza, relembra que os apoios financeiros concebidos ao desporto paraolímpico são muito inferiores aos do desporto olímpico: “Todos nós, excepto aqueles que não conseguem arranjar emprego, temos a nossa actividade profissional.” Profissionalmente, Carlos Lopes é psicólogo, especializado na área de orientação escolar. Trabalha numa repartição da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, como coordenador do Centro de Recursos de Animação Educativa.

 No início da entrevista recebe-nos com um aperto de mão certeiro, próprio de quem reconhece os vultos que se aproximam. Não tendo nascido cego, conta-nos que começou a perder as capacidades visuais num período especialmente conturbado na vida de qualquer ser humano: a adolescência. Até aos 18 anos, preferiu andar sem bengala, para fazer face aos arrasadores comentários de “cegueta” e “zarolho” provenientes dos seus colegas de escola: “Os miúdos conseguem ser terríveis”, relembra com um sorriso nostálgico.

 Até então, movimentava-se essencialmente nos circuitos familiares: “À noite, não conseguia ver nada, mas era capaz de vir da estação de comboio a minha casa, que são dois quilómetros, a pé e sozinho.  Claro que isto é um disparate e um grande risco, mas era próprio da idade. Nessa altura, os complexos de inferioridade são superiores a tudo… mas chega uma altura em que paramos para pensar.” Quando entrou para a faculdade, em 1988, deu consigo a preocupar-se com problemas tão (aparentemente) simples como a melhor forma de atravessar a rua, sair do comboio em hora de ponta e chegar às aulas atempadamente. A obrigatoriedade de se movimentar por circuitos menos conhecidos fez com que assumisse a sua deficiência, dando um passo importante na conquista da sua independência: “A minha vida estava a tornar-se um sufoco, por coisas tontas. Então, decidi finalmente comprar uma bengala.”

 Enfrentando os naturais obstáculos de uma deficiência como esta, Carlos Lopes parece ter realizado duas opções profissionais que em muito o ajudaram a aceitar a situação: estudou psicologia e praticou desporto. Como afirma, 1988 seria um ano de grandes mudanças na sua vida. Para além da entrada para a faculdade, começou também a praticar atletismo duas vezes por semana. Passados quatro meses já treinava todos os dias e, menos de um ano depois, participou no seu primeiro campeonato da Europa, em Zurique. O resultado foi uma subida ao pódio: Carlos Lopes ganhou a sua primeira medalha de prata, que seria, simultaneamente, a primeira medalha portuguesa em desporto para pessoas com deficiência visual.  À rapidez com que tudo começou a acontecer, responde com pragmatismo: “É verdade que houve uma evolução muito grande. Mas houve também muito treino.” Terá sido esta a chave para alcançar tantas glórias nacionais? O atleta considera que sim. Na sua opinião, o desporto paraolímpico português tem um grande ponto forte: “Desde cedo, as pessoas que trabalhavam connosco (treinadores e técnicos) perceberam que os atletas tinham que ter o mesmo volume de treino que os atletas olímpicos. Esse foi o segredo para conseguirmos ter resultados de grande destaque no desporto paraolímpico nacional.”

Mas este seria apenas o início. Em 1990, Carlos Lopes participou no campeonato do mundo, na Holanda, e foi campeão mundial em 200, 400 e 800 metros. Dois anos depois participou nos seus primeiros jogos paraolímpicos, em Barcelona, e também aí brilhou: trouxe para Portugal duas medalhas de ouro, batendo o recorde do mundo nos 400 metros. Em 20 anos de carreira, esteve presente em nove campeonatos da Europa, seis campeonatos do mundo e cinco Jogos Paraolímpicos. Terminou a sua carreira em 2008, em Pequim, mas não abandonou o desporto. Actualmente, Carlos Lopes é vice-presidente do Comité Paraolímpico e será o orgulhoso chefe de missão aos Jogos de 2012. Sem disfarçar a (perfeitamente justificada) vaidade, arrisca um prognóstico: “Vai ser fantástico entrar no estádio paraolímpico de Londres como chefe de missão! De certa forma é dar continuidade ao trabalho que fiz enquanto atleta, promovendo o desporto paraolímpico e dando o meu melhor para que o treino das pessoas com deficiência seja reconhecido.”

 Actualmente, Carlos Lopes é também presidente da ACAPO (Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal), função que lhe ocupa muito tempo, uma vez que dirige cerca de 90 funcionários e alguns voluntários. Perfeitamente autónomo em quase todas as tarefas diárias, não dispensa a presença da sua fiel amiga Gucci, a cadela-guia que o acompanha em todos os momentos. Para além da manifesta ternura que tem pelo animal, o atleta reconhece ainda que prefere andar com ela do que com bengala, por ouvir menos comentários miserabilistas, ditos com o tradicional tom de voz dos portugueses com menor sentido de oportunidade: “coitadinho do cego, ainda tão novo”. Quando passeia com Gucci, as atenções voltam-se essencialmente para o desempenho desta cadela que já lhe salvou a vida, não permitindo que descesse para uma linha onde estava prestes a passar um comboio.

Orgulhoso dos feitos desportivos (e pessoais) alcançados, Carlos Lopes assume que deve à prática desportiva muitos dos seus princípios e valores intrínsecos: “Aprendi que o sucesso não é imediato. P  Para se conseguir chegar à meta é preciso caminhar muito. Esta é uma mensagem que deve ser passada aos jovens, porque muitas vezes apostamos no sucesso fácil e queremos as coisas para hoje. O desporto ensina-nos precisamente o contrário - ensina-nos que, se eu quero ganhar uma medalha de ouro nos jogos paraolímpicos, tenho que treinar quatro anos, e não basta começar a treinar um mês antes. A gestão do tempo é muito importante.” Para o provar, Carlos Lopes dá alguns exemplos práticos e relembra-nos que concluiu a sua licenciatura em cinco anos, sem chumbar nenhuma cadeira, ao mesmo tempo que mantinha treinos intensivos diários.

 Para além destas vantagens, o atleta relembra que a prática desportiva ensina a trabalhar em equipa, a ser perseverante e auto-confiante: “O desporto ajuda-nos a centrar naquilo que podemos e somos capazes de fazer, em vez de estarmos sempre a pensar nas nossas dificuldades e limitações. No caso das pessoas com deficiência, isso é ainda mais importante.” Por outro lado, sublinha que um atleta vencedor é sempre aquele que não fica frustrado com as derrotas: “Ele percebe os erros, aprende com eles e tenta melhorá-los no próximo desafio.” E este é, na sua opinião, um ensinamento importante, fácil de transportar para a vida diária.

 Para Carlos Lopes, a maioria das pessoas com deficiência visual não acredita em si própria e desconhece que pode praticar desporto. No entanto, a partir do momento em que começam a treinar, descobrem capacidades que, de outro modo, nunca chegariam a conhecer. Segundo afirma, “o desporto possibilita um combate ao isolamento e um grande desenvolvimento motor.” Como exemplo, relembra ter conhecido muitos invisuais com graves problemas de equilíbrio e orientação que, após alguns treinos intensivos, melhoraram substancialmente as suas capacidades, passando a ter uma melhor noção de espaço.

 Preocupado com o actual défice de atletas paraolímpicos portugueses, Carlos Lopes afirma que a maioria dos alunos cegos não pratica educação física na escola, e apela a uma maior sensibilização dos professores para a temática: “É preciso começar por formar os educadores, para que eles percebam que um aluno com deficiência pode e deve fazer desporto. Isto ainda está longe de ser uma realidade em Portugal. Muitas vezes é o próprio aluno e a família que acham que não são capazes.” Para além disso, o atleta regista outros problemas comuns: “Na maioria dos casos, sejamos sinceros, o professor não quer ter mais trabalho. Isto é uma situação que deve ser contrariada.” Numa fase posterior, Carlos Lopes gostaria que os professores fossem capazes de encaminhar os alunos com mais capacidades para os clubes locais, para que o Comité possa ter contacto e escolher os melhores entre os melhores. Assim se formam vencedores… O curriculum do atleta e a vontade de que Portugal continue a vencer em competições internacionais parecem ser a prova disso mesmo.

Ana Catarina Pereira

bottom of page