top of page

Eu, feminista, me confesso

Debate: A igualdade de direitos entre os sexos existe ou não passa de uma miragem?

 Depois de terem conquistado o direito de voto, de terem entrado em força no mundo do trabalho e de chegarem a exercer certos cargos políticos e administrativos, as mulheres parecem ter dominado um universo outrora exclusivamente masculino. Mas será essa a verdadeira realidade? Terá o feminismo e a luta pela igualdade entre os géneros deixado de fazer sentido? Joana Amaral Dias, ex-deputada do Bloco de Esquerda e actual comentadora política; Sandra Ribeiro, presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE); e Maria Rosa Paiva, sócia fundadora da Associação Portuguesa de Mulheres Cientistas (AMONET), respondem a estas questões.

 

 “Num mundo ideal não teria que existir um dia da Mulher”. A opinião de Maria Rosa Paiva deu assim início ao debate, gerando o consenso entre as entrevistadas. Na opinião da professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa, continuam a registar-se inúmeras situações de discriminação da mulher, que a afectam sobretudo em termos profissionais: “A celebração deste dia é fundamental para tentar chamar a atenção das pessoas menos informadas sobre o assunto. Idealmente, o dia da Mulher até pode vir a despertar consciências e a vontade dessas pessoas fazerem algo para modificar a situação”, considera esperançada.

 Joana Amaral Dias concorda com as afirmações e acrescenta: “Eu considero-me feminista e entendo o feminismo como um combate pela igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Esta igualdade tem que existir a todos os níveis - empresarial, político, académico, e outros.” Na sua opinião, apesar de já terem sido dados importantes passos para a concretização deste objectivo, muito se encontra ainda por fazer: “É incrível que continuem a existir mulheres que cumprem exactamente as mesmas funções que os seus colegas homens e que ganham menos por isso. Isto passa-se em Portugal, que faz parte de um dos blocos mais civilizados do mundo - a União Europeia - e em pleno século XXI. O slogan ‘trabalho igual, salário igual’ já era do tempo da minha avó e ainda não foi cumprido.”

 Sandra Ribeiro, por sua vez, considera importante celebrar o dia 8 de Março, sobretudo pela visibilidade que políticos e meios de comunicação social lhe atribuem. Reforçando o tema do debate, concorda que as questões da disparidade salarial e do não acesso aos postos de direcção são flagelos da sociedade contemporânea que devem ser eliminados. Recorrendo a uma linguagem metafórica, a presidente da CITE compara a situação das mulheres à de ratos de laboratório que pedalam incansavelmente em rodas que não conduzem a lado nenhum: “Infelizmente as mulheres têm que trabalhar muito mais do que os homens para poderem mostrar aquilo que valem e serem reconhecidas. A este respeito há uma frase muito antiga diz ‘para parecer prata, uma mulher tem que ser de ouro’.”

 Para Sandra Ribeiro, é também importante que se sublinhe que as grandes diferenças salariais não se encontram, habitualmente, nos salários de base de cada trabalhador, mas antes ao nível dos ganhos exteriores: “Isto traduz-se numa série de aspectos, que vão desde os plafonts que homens e mulheres têm para gastar com os cartões de crédito da empresa, aos próprios carros que são atribuídos. Muitas empresas, algumas delas multinacionais, nem sequer se apercebem das diferenças que praticam. E isto tem que ser trabalhado ao nível das mentalidades, porque a lei já proíbe a desigualdade salarial por trabalho igual.”

 Ainda assim, e como faz questão de sublinhar, a luta pela igualdade entre os géneros não é, na sua opinião, exclusivamente feminina. Pelas experiências pessoais e profissionais que vai observando, Sandra Ribeiro constata com frequência que, em muitas situações e sobretudo em ambiente familiar, o homem também pode ser vítima de discriminação: “Muitos homens gostariam de tratar mais dos seus filhos e, por vezes, não têm espaço para o fazer, porque as mulheres consideram a família como o seu território. Apesar de a lei já apontar para a partilha da guarda da criança, em casos de divórcios ainda há muitos juízes que, de uma forma preconceituosa, atribuem esta guarda à mãe, restando ao pai apenas os fins-de-semana.” Esta desigualdade terá, na opinião da presidente da CITE, inúmeras repercussões negativas na família e na própria sociedade.

 

Progressão na carreira: uma etapa por cumprir

 Centrando novamente o debate nas questões ligadas à carreira profissional, Joana Amaral Dias relembra que se vive um período histórico único, no qual as mulheres têm mais qualificações que os homens. Assim sendo, a ex-deputada considera que não há nada que justifique a ausência de mulheres nos centros de decisão, sejam eles políticos, empresariais ou académicos: “Quando olhamos para as reitorias das universidades ou para a direcção dos centros de investigação é inevitável perguntarmos ‘onde estão as mulheres?’ Apesar de existirem mais mulheres doutoradas em todas as universidades do país, não são elas que dirigem os conselhos científicos e os departamentos. Porque é que isto acontece?”.

 Também para Maria Rosa Paiva é essencial que se tome consciência deste problema. Recorrendo ao gráfico cedido pela AMONET, que publicamos na página ??, afirma que, em Portugal, 65 por cento dos estudantes que concluem o grau de licenciatura são mulheres. No entanto, nos níveis seguintes, este valor vai sendo progressivamente reduzido, sendo que o número de alunos que terminam o doutoramento é já equilibrado para ambos os sexos (cerca de 50 por cento de homens e mulheres). No primeiro escalão da carreira académica (professor auxiliar) os homens começam a formar uma maioria que acaba por se tornar absoluta no último nível, como professor catedrático, em que a percentagem de mulheres não atinge os 20 por cento.

 As razões que habitualmente são apontadas para a falta de mulheres em cargos políticos ou de direcção nas empresas (como a dificuldade de realização de horas extraordinárias e de conciliação da vida pessoal e profissional) não serão, no entanto, extensíveis à vida académica. Se, por um lado, a vida de professor universitário ultrapassa em muito o horário de aulas, por outro, muitas das restantes obrigações (como o estudo e a investigação) podem ser realizadas a partir de casa. Assim sendo, lançamos a questão a Maria Rosa Paiva: existirão outros obstáculos à evolução da carreira científica das mulheres em Portugal?

 Para a representante da AMONET, as primeiras dificuldades enunciadas são um forte indicador do mau funcionamento das empresas nacionais: “Nos países mais desenvolvidos, na Escandinávia por exemplo, as reuniões de trabalho são realizadas durante o horário de trabalho, e nunca terminam, como em Portugal, pela noite dentro.” Apesar de considerar que esta é uma questão demasiado delicada para se responder em algumas horas, Maria Rosa Paiva acaba por admitir que as estruturas de poder instituídas têm tendência a ser perpetuadas nos mesmos moldes. Alegando que um homem cede geralmente o seu lugar a outro homem, a professora universitária considera que o principal problema da mulher na sociedade portuguesa é a falta de visibilidade. Os resultados estão assim à vista: “As mulheres ficam toda a vida na posição de professoras auxiliares. Trabalham o mesmo número de horas que trabalhariam se fossem catedráticas, mas é-lhes completamente vedada a possibilidade de progressão na carreira”, afirma Maria Rosa Paiva.

 “Nas universidades, que são o meio que eu conheço, sempre que estamos perante a atribuição de um cargo com poder, há um conjunto de factores muito insidiosos que colocam grandes entraves às mulheres”, revela a representante da Associação Portuguesa de Mulheres Cientistas. Para justificar a acusação, conclui ainda: “O problema não é o facto de a mulher ter dificuldades em conciliar a vida privada com a profissional - é claro que tem, mas ela consegue ultrapassar isso. O problema está na cabeça das pessoas. Uma mulher é sempre bem-vinda no mercado de trabalho, para realizar determinadas tarefas, mas a visibilidade e os cargos de poder são sempre masculinos.” Neste ponto, a frontalidade das acusações é partilhada por Joana Amaral Dias e Sandra Ribeiro, uma vez que, na opinião de ambas, o cenário é idêntico nos universos político e empresarial.

 

Estereótipos e preconceitos

 “Há todo um discurso à nossa volta, desde a escola à própria publicidade que passa na televisão, que bombardeia as crianças com preconceitos muito machistas.” A frase é de Joana Amaral Dias, que aborda assim um novo ponto no debate. Por se confrontar tantas vezes com este tipo de situações, ou mesmo com a tradicional oferta de bonecas às meninas e de jogos de construção aos meninos, a ex-deputada já criou uma expressão para definir o processo: “Isso chama-se ‘excisão cerebral feminina’. É logo no berço que são vedadas uma série de oportunidades às raparigas que poderiam ajudá-la a desenvolver o raciocínio e a cognição.”

 Sandra Ribeiro concorda e relembra que, desde os primeiros anos, as crianças são sujeitas a grandes pressões que levam os meninos a seguir áreas relacionadas com o raciocínio e a matemática, enquanto as meninas optam por cursos mais ligados ao cuidado para com os outros. Para a presidente da CITE, mais tarde, no momento de acesso ao trabalho, a segregação mantém-se: “Nós temos várias queixas de homens que tiraram cursos de serviço social ou de educadores de infância a quem é vedado o direito de exercer a sua profissão. Isto é gravíssimo e não é um caso isolado!”

 Sobre este aspecto, Maria Rosa Paiva considera que um problema grave da sociedade contemporânea, e uma das razões que levou à formação da AMONET, é precisamente a falta de modelos com que as raparigas se possam identificar. Segundo afirma, muitos nomes femininos foram completamente apagados da história da ciência, o que dificulta a opção das alunas por este tipo de carreiras: “Um dos objectivos da AMONET é precisamente tentar alcançar a igualdade entre homens e mulheres na ciência, promovendo a participação plena das mulheres em todos os campos científicos, incluindo as engenharias, as tecnologias ou as ciências sociais e humanas.”

 Para as cientistas associadas da AMONET, é fundamental que todas as estruturas que possibilitam a distribuição de poder sejam igualmente formadas por homens e mulheres: “Todas as comissões de avaliações deveriam ter paridade de género. Essa foi a razão pela qual nós fundámos a AMONET em 2004.  No ano anterior tinha havido uma avaliação das licenciaturas em Portugal e verificou-se que as pessoas nomeadas para as comissões de avaliação eram maioritariamente homens. Os cursos ligados à área de ambiente, que tinham cerca de 65 por cento de alunas e professoras, foram avaliados por uma comissão de 13 homens. A área de química, em que 70 por cento dos cientistas são mulheres, foi avaliada por uma comissão de 18 homens. Perante tal facto, decidimos tentar fazer alguma coisa.”

 Também para Joana Amaral Dias, a questão das mulheres que são tomadas como referência pelas gerações mais jovens adquire contornos preocupantes. Frequentemente convidada para dar acções de formação sobre igualdade nas escolas, a psicóloga e antiga deputada costuma pedir aos alunos que escrevam num papel três nomes de heróis ou modelos do seu sexo que gostassem de seguir. Os rapazes dão respostas variadas que vão de jogadores de futebol a líderes políticos e históricos. A maioria das raparigas, por sua vez, entrega papéis em branco dizendo que não sabem o que responder: “Elas têm muito poucos modelos de identificação alternativos. Para além disso, são bombardeadas com anúncios de mulheres domésticas ou de raparigas que constituem objectos sexuais. O problema não é a inexistência de mulheres importantes e influentes; o problema é que elas são totalmente esquecidas pelos meios de comunicação social, portanto não são conhecidas, e esta é uma questão essencial na construção da identidade.”

 

Num futuro muito próximo

 Para as três entrevistadas, é urgente que se combatam os estereótipos referidos e que se democratizem as estruturas de poder, com igual acesso para mulheres e homens. Outros detalhes, como o tipo de linguagem habitualmente utilizada, são também de grande importância. Neste aspecto, Sandra Ribeiro dá alguns exemplos: “Nos discursos políticos, na televisão ou nos jornais, quando dizem ‘os homens’, ‘os trabalhadores’, ou ‘os leitores’, eu não me sinto representada. Eu não sou um homem, não sou um trabalhador, nem sequer sou um leitor.”

 Na opinião de Sandra Ribeiro, o futuro deve também passar por uma maior sensibilização dos empresários para as questões parentais: “O tecido empresarial tem finalmente que perceber que, tanto homens como mulheres, podem ter que se ausentar esporadicamente do trabalho, para cuidarem dos filhos ou de outros familiares dependentes.” Consciente de que esta é ainda uma realidade distante, a presidente da CITE assume: “o que nós temos é uma situação de desigualdade ao nível pessoal e familiar que faz com que, no mercado de trabalho, as mulheres estejam sempre com um peso às costas, que os homens não têm.”

 Para Sandra Ribeiro, a igualdade entre os géneros terá assim que começar na esfera privada, com a partilha de tarefas por ambos os membros do casal: “Quando as coisas melhorarem a este nível tenderão a melhorar a nível público, no mundo do trabalho.” As suas colegas de debate concordam, enquanto anseiam por rápidas mudanças num futuro próximo. Um futuro que construa uma sociedade mais justa e igualitária.

 

As desigualdades no trabalho e no emprego (Dados fornecidos por CITE)

 - Em 1960 a taxa de actividade das mulheres era de apenas 13 por cento. Em 2009 atingiu os 56 por cento, enquanto a masculina é de 65 por cento.

 - A participação das mulheres no mercado de trabalho é predominante nos sectores de saúde e acção social (85 por cento), enquanto os homens predominam em sectores ligados à construção, à electricidade e ao gás (95 por cento).

 - As desigualdades salariais em função do sexo mantêm-se muito elevadas: as mulheres ganham, em média, menos 22 por cento do que os homens. Esta diferença acentua-se nos quadros superiores, em que atinge os 30 por cento.

 - Em média, os homens gastam mais 2h30 por semana na actividade profissional. As mulheres gastam mais 16h em trabalho não pago (na realização de tarefas domésticas ou no cuidado de crianças e idosos).

 - Em 2009 a nova lei da parentalidade fez com que o número de homens que partilharam a licença com a mãe da criança e que gozaram 30 ou mais dias de dispensa subiu de 0,8 por cento (em 2008) para 14,1 por cento.

 

Outros dados:

 

 - A Assembleia da República é constituída por 230 deputados. Apenas 60 são mulheres (30 por cento): www.parlamento.pt

 - Em 2010, 39 mulheres foram mortas em Portugal, dois terços delas pelos seus maridos ou companheiros, segundo dados da UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta. GNR e PSP já anunciaram que, só no primeiro semestre de 2010, registaram 15.200 queixas de violência doméstica (mais 600 do que em igual período de 2009).

 - O empreendedorismo feminino está em crescimento: em 2010, 33 por cento das novas empresas foram criadas por mulheres, de acordo com a Associação Portuguesa de Mulheres Empresárias.

 - As mulheres ocupam apenas 3,6 por cento dos cargos nos conselhos de administração das grandes empresas em Portugal, um número muito inferior à média europeia de 11,7 por cento, segundo dados da European Women's Professional Network (EWPN).

Ana Catarina Pereira

bottom of page