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Fiéis a Alá​

 

Em algumas culturas e religiões, a infidelidade é um crime que pode ter consequências mortais. Nos países islâmicos, mulheres adúlteras são apedrejadas, em julgamentos públicos que as organizações internacionais não conseguem impedir.

 

Aissatu Só tem 60 anos e vive em Portugal há três. É guineense e aguarda a finalização de um tratamento médico que veio realizar a Lisboa. Com dificuldades em falar português, vai pronunciando lentamente palavras em crioulo que nos esforçamos por entender. Quando tal não acontece, é o responsável pela mesquita de Sacavém que se prontifica a auxiliar (e a vigiar) a tarefa de descodificação linguística.

Como muçulmana, considera-se satisfeita por poder praticar livremente a sua religião num país ocidental, com costumes tão distintos dos seus. Embora se apresente com um traje de cores garridas, está coberta da cabeça aos pés, com excepção do rosto. Na cabeça, ostenta o lenço tigare que lhe esconde o cabelo todos os dias do ano e que, como orgulhosamente nos explica, apenas as mulheres que já realizaram a peregrinação a Meca podem usar. No que toca a vestuário, confessa que, apesar de já viver em Portugal há três anos, ainda se choca quando vê algumas raparigas usarem minissaia, penteados ou maquilhagens extravagantes.

Sobre este tema, o “tradutor” José Amara Queta tem também algo a dizer. Aos 67 anos, encontra-se reformado e é responsável pela mesquita de Sacavém. Igualmente nascido na Guiné, vive em Portugal desde 1982 e é casado com uma única mulher. Segundo nos diz, as muçulmanas usam este tipo de roupas, que considera discretas, “para evitar a atracção do homem. Se as raparigas não andassem vestidas como andam, não existia tanto adultério no mundo”. Aissatu Só concorda e José Amara Queta prossegue em tom de protesto: “Como é que um homem pode deixar de pecar, mesmo que seja só em pensamento, quando elas andam para aí no meio da rua a provocar-nos? A provocação vem sempre do sexo feminino para o masculino. Por exemplo, todos os dias, às duas da tarde, passa aqui em frente da mesquita uma rapariga de minissaia, com umas pernas boas, mesmo que esteja muito frio ou a chover. Eu não posso deixar de olhar, não é? E sei que é pecado!”

Relembrando os tempos em que o marido era vivo, Aissatu Só sublinha que a infidelidade é considerada pecado na religião muçulmana. Tendo sido a segunda esposa de um marido polígamo, afirma nunca se ter sentido desagradada ou ciumenta com a situação de partilha. Para além disso, considera que ele a tratava de uma forma exemplar: “Nunca me bateu, nem me obrigou a trabalhar. Fiz sempre a vida de casa, cuidei dos meus filhos, e agora dos meus netos. Foi muito bom marido.” De resto, não acredita que a religião islâmica encare a mulher como um ser inferior, ou que os homens tratem mal as suas esposas. Tanto da sua experiência pessoal, como das histórias de outras mulheres muçulmanas que foi conhecendo ao longo da vida, foi rara a vez em que considerou que os casamentos, ainda que polígamos, não fossem felizes.

A este respeito, para alguns muçulmanos mais progressistas, a poligamia é consequência de uma interpretação errada dos textos sagrados. Tendo o profeta Maomé sido casado com várias mulheres, sublinham que tal se justifica pelo contexto histórico em que viveu. Tratando-se de um período de guerra, no qual os homens estavam a desaparecer, as mulheres enviuvavam e ficavam sozinhas, com os seus filhos. Os homens podiam então casar com mais do que uma esposa porque se acreditava que, desta forma, as protegiam. No entanto, apesar das mudanças históricas desde então ocorridas, e de a maioria dos muçulmanos viver em países que se encontram em paz, a tradição mantém-se.

Tanto para Aissatu Só como para José Amara Queta, a situação é perfeitamente natural e, na maioria dos casos, desejável: “Depois do casamento, que tem de ser na mesquita, o homem muçulmano só pode ter relações com a mulher, ou com as mulheres, com quem casou. Não pode andar para aí a desejar outras!” Segundo explica o responsável pela mesquita de Sacavém, esta é precisamente a fórmula criada pelo islamismo para combater a infidelidade: “A poligamia dos homens serve para evitar o adultério. O homem que tem duas ou três mulheres em casa, só tem relações com aquelas. Escusa de ir atrás de outras!” Para além da defesa dos valores do seu povo, tarefa na qual se empenha energicamente, José Amara Queta não resiste ainda a fazer uma comparação: “Eu conheço muitos homens, alguns até mais velhos do que eu, que têm uma mulher em casa e que andam com outras na rua. Isso, para nós, é pecado mortal, mas ninguém se preocupa com isso nas outras religiões.”

 

No entanto, também aqui a aplicação da lei nos parece distinta: se as mulheres adúlteras, em países como o Afeganistão ou a Arábia Saudita, são castigadas com a pena de morte, o homem é apenas, no pior dos casos, chicoteado. Para este muçulmano, a tradição dos países mais fundamentalistas tem estas obrigações. Apesar de também não se sentir confortável com o tema, e de qualificar o castigo como “excessivo”, encolhe os ombros e, em tom conformado, afirma: “Nas ‘Áfricas’ isso já não acontece. É só lá no ‘país árabe’. Eu acho mal e doloroso, mas o que é que hei-de fazer? Isso está de acordo com a nossa lei, como se há-de mudar? Eu também já vi, com os meus olhos, um homem adúltero ser chicoteado. Ele depois arrependeu-se e pediu perdão…” Ao assassinato público de uma mulher, garante nunca ter assistido.

Sobre o tema, Aissatu Só tem também uma opinão formada. Apesar de cumpridora das tradições da sua religião, e de considerar que uma mulher deve ser sempre fiel ao marido, não concorda com este tipo de punição: “Fico triste, quando vejo essas notícias na televisão. Não acho bem que façam isso às mulheres. Atiram-lhes pedras no meio da praça até elas morrerem… que horror!” Por uma questão de igualdade de direitos, perguntamos ainda se estas situações não poderiam ser evitadas caso a hipótese de poligamia fosse alargada ao sexo feminino. Aissatu Só julga que estamos a ter um problema de comunicação: “Como? Uma mulher ser casada, ao mesmo tempo, com mais do que um homem? Claro que não!” José Amara Queta, por sua vez, exalta-se e considera a opção totalmente disparatada: “Mas isso cabe na cabeça de alguém? Isso não faz sentido nenhum! Uma mulher tem que ser casada com um só homem, tem que respeitá-lo e cumprir a lei que vem nas escrituras.” A este respeito, perguntamos-lhe ainda o que poderá acontecer se um marido estiver descontente com a sua esposa. As cenas de violência doméstica serão admitidas pela comunidade islâmica? A resposta é simples, e novamente comparativa: “Não há casal nenhum que não tenha problemas. Mas eu acho que os católicos batem muito mais nas mulheres do que os muçulmanos! Eu conheço muitos homens que batem nas mulheres, quando estão com os copos, e que não são muçulmanos.”

Apesar do comentário menos prestigiante direccionado a crentes de outras religiões, José Amara Queta sublinha que tem boas relações com católicos e adventistas de sétimo dia: “As igrejas deles são aqui perto da mesquita. Há dias em que fazemos festas e convívios, e assistimos às cerimónias uns dos outros. Tratamo-nos todos como irmãos.” Como gosta de sublinhar, sente-se igualmente realizado por viver numa comunidade multicultural, que sabe acolher e respeitar as diferenças entre todos: “Portugal é um país de liberdade religiosa, decretada pelo antigo Presidente da República, Jorge Sampaio. Aqui, vive-se bem o islamismo e as outras fés.”

Respeitando os valores transmitidos pelo islamismo, os dois muçulmanos afirmam cumprir à risca todas as tradições. Acordam diariamente às 6h30 para fazer as primeiras orações (cinco no total), não comem carne de porco, nem consomem bebidas alcoólicas. Etimologicamente, explicam-nos que a palavra Islão deriva do árabe “Saláma”, que significa paz, pureza e obediência. No sentido religioso, remete para uma submissão voluntária à vontade de Deus, cuja mensagem foi transmitida aos homens pelo profeta Muhammad (570 d.C.), através do livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão. Com mais de 2.500 anos de História, esta é uma das mais antigas religiões do mundo. A evolução das mentalidades e o desejo de mudança de alguns muçulmanos choca assim com o fundamentalismo e os dogmas criados ao longo dos tempos. Não podemos, no entanto, deixar de nos questionar: será este um traço exclusivamente islâmico ou um ponto em comum com outras religiões?

Texto Ana Catarina Pereira

Fotografia Jorge Nogueira

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