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Futebol de Rua

 Seja porque esta é uma forma de desporto inclusiva, ou porque os resultados das equipas têm trazido mais alegrias ao país do que outras selecções, o Futebol de Rua desperta cada vez mais interesse nos portugueses. O segundo lugar obtido no mundial do ano passado é auspicioso e deixa uma fasquia muito alta para este ano. Em Setembro, chegarão os nossos desportistas a campeões do mundo? Esperamos que sim.

 

Grandes expectativas

 Os rendimentos mensais destes jogadores são os mínimos ou abaixo disso, pouco comparáveis aos muitos milhões de que se fala quando uma grande transferência é noticiada. Levam uma vida que nem sempre escolheram, passam os dias a lutar contra uma ex-dependência ou esforçam-se arduamente por cumprir os objectivos que os assistentes sociais lhes traçam. Situações distintas com um ponto em comum: um imenso orgulho de pertencer à selecção e representar as cores da bandeira nacional.

 A associação Cais é a responsável pela preparação da equipa portuguesa que, desde 2004, participa no Homeless World Cup (Campeonato Mundial de Sem-Abrigo), organizado pelo International Network of Streetpapers (congregação das associações mundiais que publicam jornais e revistas para apoiar os sem-abrigo, como é o caso da revista Cais). Este ano, o campeonato irá realizar-se no Rio de Janeiro e a expectativa é grande já que, em 2009, a equipa verde e vermelha ficou em segundo lugar.

 Gonçalo Santos é técnico de reabilitação e inserção social e coordenador do projecto de Futebol de Rua. Com entusiasmo, explica que o primeiro passo para a organização deste torneio é o envio de convites a todos os vereadores de acção social das câmaras municipais, para que estes organizem um torneio concelhio e, posteriormente, distrital. O objectivo é que estes parceiros contactem a rede social de instituições, e que as próprias constituam equipas. A logística da primeira parte do torneio é, desta forma, organizada a nível local, envolvendo distritos de Norte a Sul do país. Encontrados os vencedores, a Cais organiza a competição nacional, sendo que, para além dos jogos, a associação faz questão que existam actividades culturais apresentadas pelas próprias equipas (que poderão traduzir-se em peças de teatro, danças ou músicas representativas de cada concelho). Paralelamente, é também possível que outros desportos sejam representados no torneio. No ano passado, afirma Gonçalo Santos, os participantes assistiram a demonstrações de boxe e rapel.

 Para o coordenador do projecto, esta experiência tem repercussões não apenas a nível desportivo, mas também (e sobretudo) a nível social: “Tentamos que o projecto não seja indiferente para nenhuma das pessoas que participa, mas sobretudo para aqueles oito jogadores que vão ao mundial. Durante a preparação para o mundial, fazemos treinos desportivos e treinos sociais. Nos primeiros, os jogadores exercitam as suas competências desportivas, enquanto num treino social procuramos que eles desenvolvam as competências sociais, como saber estar, saber fazer e saber ser. Trabalhamos também o fair-play e a motivação, e falamos da importância do grupo.” Nos meses e anos que se seguem à participação no mundial, Gonçalo Santos assegura que há um acompanhamento dos jogadores, no sentido de medir o impacto da experiência na vida dos mesmos. Para o coordenador do projecto, é especialmente gratificante notar que os jogadores se esforçam por melhorar as suas condições de vida: alguns voltam a estudar e outros regressam ao mundo do trabalho, sendo que a grande maioria consegue deixar a rua ou as precárias condições em que vivia.

 No ano passado, Gonçalo Santos revela que 13 distritos e as duas regiões autónomas estiveram envolvidos no torneio, o que se traduziu em cerca de mil jogadores participantes, bem como 500 voluntários e técnicos de serviço social. Em Milão, o coordenador do projecto afirma que os oito elementos da equipa nacional se aperceberam de grandes diferenciações sociais entre os jogadores em competição: se o Brasil levava uma equipa constituída apenas por “meninos de rua”, os jogadores da Suíça auferiam rendimentos sociais de inserção superiores à maioria dos ordenados praticados em Portugal. Para Gonçalo Santos, foi importante explicar e contextualizar as diferenças, para que os jogadores pudessem viver intensamente esta experiência multicultural.

 

Litos, um herói nacional

 

 Arliton Vilela, mais conhecido por Litos, foi um dos membros da equipa que participou na final mundial de Melbourne, em 2008. Na mala de regresso, traria muitas experiências para contar. Quando lhe perguntamos como foi viajar até à Austrália e vestir as cores da selecção nacional, a resposta é simples: “Eh pá, foi brutal! Não sei explicar, mas sei que mudou muito a minha vida.” O orgulhoso marcador de 37 golos que recebeu o título de segundo melhor jogador do mundial, recorda o momento com um brilho nos olhos, sublinhando: “Foi muito bom! E também foi importante conhecer o melhor jogador do mundial, que é brasileiro. Eu podia ter sido o melhor, mas lesionei-me num dos jogos e acabei por ficar em segundo.”

 Num país situado do outro lado do mundo, Litos gostou de conhecer pessoas diferentes, com histórias de vida interessantes. Por outro lado, “As mulheres também são muito bonitas!”, garante o jogador de sorriso aberto. Como nos garante, a primeira viagem ao estrangeiro constituiu um grande incentivo na sua vida. Litos é hoje um estudante aplicado que pretende, futuramente, conseguir um bom emprego: “Nunca mais quero estar sem fazer nada. Acho que, agora, tenho aquilo a que as pessoas chamam de objectivos. Nos próximos meses tenho que apresentar um projecto de gestão de empresas para terminar o 12º ano. Quero terminar os estudos e continuar a minha carreira futebolística.”

 

O treinador Carlos Codinha

 Carlos Codinha tem 35 anos e um sobrenome de origem catalã. É o treinador da selecção nacional de Futebol de Rua e um dos responsáveis pelo segundo lugar conquistado no ano passado, em Milão. Técnico desportivo da Santa Casa da Misericórdia do Seixal, dirige uma equipa que ouve as suas directrizes com a máxima atenção e que recebe os seus conselhos com respeito.

 Em traços gerais, diz-nos que, na competição, participam equipas femininas, masculinas e mistas, representativas de 56 nações. Tendo por base as regras do Futebol de Rua, as equipas são constituídas por quatro jogadores, com idades acima dos 16 anos. Cada equipa pode substituir os quatro jogadores iniciais no decurso do jogo e com a frequência que desejar, sendo que os árbitros são originários de diversos países, convidados pela organização. O campo é mais pequeno do que um campo de futsal e o guarda-redes não pode sair da sua área.

 Consciente da responsabilidade que detém, acredita neste projecto sobretudo pela sua função inclusiva. No caso de Litos, sublinha que, depois da participação no mundial, o jogador passou a ser visto como um modelo a seguir: “Aqui no Seixal toda a gente comentava que o Litos estava na Austrália. Acompanhavam os resultados dos jogos através da Internet e a própria imprensa regional também seguiu o percurso dele com interesse. Por tudo isto, este ano tivemos muitos mais participantes inscritos.” Para Carlos Codinha, o lado humano da experiência é o mais significativo: “Estou a lembrar-me concretamente de um sul-africano que conheci em Milão, no ano passado. O corpo dele era História, cheio de buracos de balas. Depois de participar no torneio, disse-me que não queria mais aquela vida de pistolas e gangs: já só queria jogar à bola e levar uma vida tranquila. São histórias como estas que emocionam qualquer um e que eu vou recordar sempre.”

 Descrevendo a equipa que dirige, Carlos Codinha destaca o empenho de cada jogador: “Para mim é importante ver como estes jovens se ‘matam’ em campo. Pela bandeira nacional, eles jogam até à exaustão. O Alexis, que é outro jogador, fez cinco jogos lesionado, no mundial do ano passado.” À medida que a equipa vencia cada fase do campeonato, o orgulho do treinador aumentava: “Foi especialmente gratificante eliminar o Brasil (risos). Cantar o hino nacional, na final, também foi impressionante. Estes miúdos fizeram um brilharete!” E por se tratar de uma equipa especialmente jovem, Carlos Codinha tem exigências específicas a respeito dos seus percursos escolares: “Nenhum miúdo que venha treinar pode faltar às aulas, ter más notas ou estar em situação de chumbo. Esta é uma condição essencial.” Um exemplo a seguir e um orgulho cada vez mais nacional. Em Setembro contamos com estes futebolistas de rua, lutadores diários de uma vida nem sempre fácil.

Ana Catarina Pereira

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