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Vícios da língua portuguesa

Manual dos erros mais comuns

 Era segunda-feira de manhã. Assim começa uma história, carregada de olheiras e amaldiçoamentos de mais uma semana de trabalho. Amanhecia o dia e eu estava convidada para a abertura inaugural de uma galeria de arte. Os trabalhos de um pintor desconhecido antecipavam a aposta em novos talentos, o que, desde logo, me agradava. O convite dizia que a exposição só estaria patente nos dias 10, 11 e 12, inclusive.

 Ao pequeno-almoço, planeio antecipadamente o meu dia: deixar o Pedro na escola, visitar a exposição, almoçar com uma amiga, entrevistar o vereador da cidade, passar na redacção, ir à festa de Natal da escola do meu filho, voltar para casa e trazer sushi para o jantar. São estes os minuciosos detalhes da minha agenda, aos quais espero não acrescentar surpresas imprevistas, eternas responsáveis pelo meu stress crónico. Para não passar a vida a alterar a agenda, a outra alternativa seria simplesmente não fazer planos: mas isso, o meu sentido de organização proíbe expressamente! Sintomas indicativos da idade, provavelmente. Há anos atrás nada disto acontecia… Trabalhava doze horas por dia, alterava planos de hora a hora, desmarcava jantares com os amigos, mas nada me stressava. A maternidade veio alterar tudo isto: não posso simplesmente ligar ao meu filho e dizer-lhe que não vou comparecer, em pessoa, na festa da escola. Uma possível tragédia poderia acontecer.

 Mas hoje está tudo a correr bem: passei na inauguração, almocei com a Filipa, entrevistei o vereador, já gravei duas peças e entreguei as últimas versões definitivas. Preparo-me para sair. Eis senão quando a televisão anuncia uma verdadeira excentricidade: uma multidão de pessoas invade a Assembleia da República para reclamar o direito a salários mais justos e ao pagamento de horas extraordinárias. Facto real que não seria digno de registo se os manifestantes não se encontrassem… despidos de preconceitos. Um deles, tal como veio ao mundo, grita bem alto: “Pusemos de lado os nossos complexos e viemos dizer aos senhores deputados e deputadas que já não temos dinheiro para nada, nem sequer para comprar roupa. Se continuarmos assim prometemos andar todos nus, um dia por semana, pelas ruas da cidade!” Periodicidade sublinhada pelo coro de manifestantes: “Todos nus, um dia por semana, um dia por semana!”

 Temo o pior. Não, não é a possibilidade de ver homens nus a correr pelas ruas de Lisboa que me assusta, mas antes a cara do meu chefe. A sentença é proclamada de imediato: “Mónica, tens que ir já para lá! Tenho a certeza absoluta que vais fazer uma óptima reportagem.” E os elogios continuam, apenas lembrados em horas de aperto: “És o nosso melhor elo de ligação com a Assembleia, ninguém aqui na redacção tem os teus contactos.” Claro que, àquela hora, todos os meus colegas concordaram unanimemente. De sorriso amarelo no rosto, penso comigo mesma: “Nem vale a pena dizer-lhes que fazer mais esta reportagem irá exceder em muito os meus horários!”

 Pego no gravador, juntamente com a carteira e o bloco de notas, e sigo de armas e bagagens para a Assembleia, onde não chego a entrar para dentro. A festa prossegue cá fora. Os manifestantes já foram expulsos pela polícia, mas o protesto promete continuar. “Todos nus, um dia por semana! Todos nus, um dia por semana!” Com os minutos contados, consigo gravar dois bons sons. No primeiro, uma mulher de 34 anos garante: “Sinto-me completamente livre! Sempre quis fazer isto. Despirmo-nos é importante - chama a atenção das pessoas para certos problemas da nossa sociedade que não podem continuar.” Os vírus e as gripes com nomes de letra de alfabeto não a parecem preocupar. Critérios pessoais que não nos compete a nós discutir. Outro senhor acrescenta: “A nudez é uma forma de expressão artística desde a Grécia Antiga. A arte esteve sempre ao serviço da sociedade, lançando alertas para situações graves, como esta que vivemos hoje. Nós não podemos continuar a trabalhar doze horas por dia, deixar de ter vida pessoal e não ter sequer dinheiro para as necessidades mais básicas. Isso parece-nos tão óbvio como a nossa nudez!” E dou por concluída a reportagem, com dois sons que justificam o despir de preconceitos. O desfecho final não seria trágico. Nenhum manifestante foi preso ou alvo de violência por parte dos polícias e seguranças presentes. Entretanto, a festa do meu filho já devia ter começado!

 Perco-me nas ruas com trânsitos cortados. Carros buzinam sem piedade. Peço indicações a um arrumador, que observa a insanidade dos que conduzem em Lisboa: “A Rua da Misericórdia? Com certeza! Então a menina vai virar ali ao fundo à direita, depois novamente à direita e depois sobe, sobe, sobe tudo para cima até encontrar uma rotunda. Sai na segunda saída e está na Rua da Misericórdia.” Já me preparava para seguir as indicações, quando sou cobrada: “Oh menina, uma moedinha…” Não tenho, mas divido o meu chocolate em duas partes iguais e dou-lhe metade.

 Avisto a escola e, ao longe, novos sinais de protesto, desta vez em ponto pequeno. Os contornos da criança à janela parecem-me familiares. Da varanda do primeiro andar, o meu filho grita bem alto: “Sou órfão de pai e mãe! Quem me quer adoptar?” A festa estava mais que terminada e o Pedro, obviamente, indignado. Encarar de frente com a situação não foi fácil. Ao fim de alguns minutos lá conseguimos que ele retornasse de novo ao chão, sob promessa de trocar o sushi do jantar por pizza e uma hora inteira de consola antes de ir dormir. É mesmo assim, por muito que tenha crescido, continua a permanecer uma criança que precisa dos mimos da mãe. Quando não, reclama-os em alto e bom som!

 

Vícios de linguagem

 A definição de vícios de linguagem dada por José Pedro Machado no Grande Dicionário da Língua Portuguesa é a seguinte: “Defeito de linguagem contra o léxico, a sintaxe, a eufonia ou a prosódia regular dos vocábulos. Emprego ou abuso dos termos técnicos, de palavras difíceis, de construções anormais, transpostas, de neologismos frequentes; ornato excessivo ou asiaticismo do estilo. Emprego de pronúncia, frases e termos restritos a uma dada região.”

 Pedro Martins, linguista e investigador da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, comenta da seguinte forma as desventuras da jornalista Mónica: “Neste texto, todos os exemplos de ‘vícios’ são redundâncias ou pleonasmos. Enquanto algumas dessas redundâncias (‘surpresas imprevistas’) são evitáveis e, à primeira vista, consideradas erros, outras nem tanto (‘outra alternativa’), havendo ainda as que estão tão consagradas que funcionam como um bloco (‘proíbe expressamente’). Os pleonasmos (‘sobe tudo para cima’) são sempre evitáveis.” Pedro Martins sublinha ainda que, para além do elevado grau de redundância estrutural que muitas línguas têm, como é o caso do português, existem vários casos de redundância semântica. Como exemplo, recorda o início da frase ‘A rainha é uma mulher que...’. Aqui, o significado de ‘rainha’ implica invariavelmente que esta seja uma mulher, mas este é o tipo de situações que, na sua opinião, não podemos nem necessitamos de evitar.

 Os responsáveis pela vulgarização de alguns destes erros são, no dizer de Pedro Martins, os próprios meios de comunicação social: “Para lá dos seus vícios idiossincráticos, como o uso de certos tempos e modos verbais para mitigar alegações ou deliberadamente tornar o discurso mais vago, há certas expressões que estão ‘erradas’ e que são tão usadas pelos media que há-de chegar o dia em que já não são consideradas ‘erros’. Um bom exemplo é o par ‘ao encontro de/de encontro a’. Parece-me que, embora exactamente opostas, estas duas expressões são usadas muitas vezes como sinónimos. Tenho de referir que me divirto quando, depois de um grande discurso, um político diz que tudo aquilo que acabou de proferir vai de encontro aos desejos do seu partido e dos portugueses.”

 Também Conceição Garcia, revisora profissional e formadora nesta área, partilha da mesma opinião. Enquanto observadora, dirige a sua crítica mais veemente ao uso e abuso de expressões como evento, conceito, evacuar (pessoas, em vez de espaços), realizar (na acepção imprópria, e contaminada pelo inglês, de “ter consciência, ter entendimento ou aperceber-se de que”) casual (por contaminação do inglês, com o sentido de “informal”, “despreocupado” ou “descontraído”), alegado e massivo.

 Apesar disso, ressalva a importância da desconstrução de alguns preconceitos relativos aos maus usos da língua: “Justiça seja feita, não creio que possamos dizer que os portugueses sejam os únicos a ‘adulterar’ e a ‘viciar’ a sua língua. Desde logo, não posso deixar de assinalar a natureza moralizadora e condenatória implícita nestes conceitos; não obstante, numa perspectiva histórica (e despojada de juízos de valor), a sobrevivência da língua depende da sua capacidade para se renovar e transformar.” Desta forma, sublinha Conceição Garcia, a evolução da língua comporta sempre alguns protestos: “Não nos podemos esquecer de que o português que falamos e defendemos hoje é também produto deste tipo de fenómeno, e que portanto ele inclui elementos que algures no contínuo histórico foram objecto de reprovação.”

 

Exemplos de outras redundâncias ou vícios de linguagem, não utilizados no texto:

 - Eu, pessoalmente

 - A minha opinião pessoal

 - Principal protagonista

 - Projectos para o futuro

 - Criar novos empregos

 - Habitat natural

 - Erário público

 - Despesas com gastos

 - Países do mundo

 - Ganhar grátis

 - Percorrer um percurso

 - Calar a boca

 - Tenho um amigo meu que

 - Conviver junto

 - Propriedade característica

 - Anexo junto à carta

 - Quantia exacta

 

Entrevista a Pedro Martins

- Para além dos utilizados no texto em anexo, que outros vícios de linguagem caracterizam os portugueses?

 Confesso que não conheço nenhum “vício de linguagem” característico dos portugueses, ou seja, que não se verifique noutras línguas. É um fenómeno ubíquo nas línguas do mundo.

 

- Qual a justificação que os linguistas encontram para a vulgarização destas incorrecções?

 

 A vulgarização destas incorrecções acontece porque o conceito de incorrecção é muito volátil e, na verdade, as incorrecções só o são até, eventualmente, se consagrarem. Por exemplo, aquilo que se apelida de “bom português” muda ao longo do tempo. Se formos rigorosos, o português falado em Trás-os-Montes tem marcas que se aproximam mais do português de há uns séculos do que o português falado em qualquer outra parte de Portugal. No entanto, se alguém perguntar onde se fala o “bom português”, ninguém vai dizer que é em Trás-os-Montes. O “você” começou por ser “Vossa Mercê” até ficar como ficou. “Tiago” vem de uma separação mal feita de “Santiago”, que já era uma amálgama de “Santo Iago”.  A vulgarização destras contruções “erradas” acontece pela via do uso, especialmente nas línguas que têm escrita, como é o caso do português e de muitas outras línguas.

 

- Os media são responsáveis por muitos destes vícios? Quais são, na sua opinião, os mais evidentes ou marcantes, utilizados por jornais, rádios, televisão e internet?

 

 Assim como se estabelece, hoje em dia, também com a ajuda dos media, que em Coimbra é que se fala “bem”, o que, do ponto de vista científico, não tem qualquer fundamento, já que qualquer variedade do português em qualquer parte do mundo é linguisticamente tão válida como as demais, também há vícios que, com a ajuda dos media, se espalham. Para lá dos seus vícios idiossincráticos, como o uso de certos tempos e modos verbais para mitigar alegações ou deliberadamente tornar o discurso mais vago, há certas expressões que estão “erradas” e que são tão usadas pelos media que há-de chegar o dia em que já não são consideradas “erros”. Um bom exemplo é o par “ao encontro de/de encontro a”. Parece-me a mim (passo a redundância...) que, embora exactamente opostas, estas dias expressões são usadas muitas vezes como sinónimos. Tenho de referir que me divirto quando, depois de um grande discurso, um político diz que tudo aquilo que acabou de proferir vai de encontro aos desejos do seu partido e dos portugueses.

 

Comentário:

 

 Na verdade, muitos dos ditos “vícios da língua portuguesa”, tantas vezes apontados pelos “comuns mortais” e por autoridades literárias, não são vícios da língua portuguesa. A língua portuguesa não tem um mecanismo próprio que proporcione vícios. Quando se diz que “a língua portuguesa é traiçoeira”, está, no fundo, a dizer-se que a língua que se fala é traiçoeira, e acontece que falamos o português. Isto significa que os ingleses ou os franceses dirão, certamente, o mesmo da sua língua.

Neste texto, todos os exemplos de “vícios” são redundâncias ou pleonasmos. Enquanto algumas dessas redundâncias (“supresas imprevistas”) são evitáveis e, à primeira vista, consideradas erros, outras nem tanto (“outra alternativa”), havendo ainda as que estão tão consagradas que funcionam como um bloco (“proíbe expressamente”). Os pleonasmos (“sobe tudo para cima”) são sempre evitáveis. É importante compreender que, além do elevado grau de redundância estrutural que muitas línguas têm, como é o caso do português (por exemplo, a concordância em género e número), há casos de redundância semântica – como “A rainha é uma mulher que...” em que o significado de “rainha” implica invariavelmente que esta seja uma mulher – que, simplesmente, não podemos nem precisamos de evitar.

Entrevista Conceição Garcia

 

Para além dos utilizados no texto em anexo, que outros vícios de linguagem caracterizam os portugueses?

 

 São muitos os erros e os vícios de linguagem praticados pelos portugueses, e poderiam classificar-se em função de muitas variáveis (escrita/oralidade, contexto linguístico, modelo/género discursivo, factores sociais, etc.). Contudo, justiça seja feita, não creio que possamos dizer que neste particular os portugueses sejam os únicos a “adulterar” e a “viciar” a sua língua. Desde logo, não posso deixar de assinalar a natureza moralizadora e condenatória implícita nestes conceitos; não obstante, numa perspectiva histórica (e despojada de juízos de valor), a sobrevivência da língua depender da sua capacidade para se renovar e transformar. Não nos podemos esquecer de que o português que falamos e defendemos hoje é também produto deste tipo de fenómeno, e que portanto ele inclui elementos que algures no contínuo histórico foram objecto de reprovação. A língua vive nesta (e desta) permanente dualidade, entre aceitar/integrar o novo e preservar/defender a tradição. É também deste equilíbrio precário, e desta “rebeldia” constante que se afirma a identidade e a vitalidade de uma língua. Se assim não fosse, ela não sobreviveria.

 Agora, que margem de desvio podemos, devemos ou estamos dispostos a admitir, isso é outra questão, e que convoca valores de ordem muito diversa: ética, política, social, histórica... Em todo o caso, os nossos níveis de tolerância, individual e colectiva, variam seguramente de acordo (e note que acabo de empregar um estrangeirismo que ainda hoje é “reprovado” pelos mais puristas) com os contextos, os modelos e os registos de língua de que estivermos a falar. Porém, a grande clivagem faz-se, sem dúvida, entre oralidade e escrita. Talvez por ser mais efémera a primeira, mais normativa a segunda... E aqui entra de novo a questão da preservação, mas também a da responsabilidade.

 Quanto ao cerne da sua pergunta, “que outros vícios de linguagem”... Bem, é impossível sermos exaustivos neste espaço, mas os principais julgo que são os que envolvem o recurso a neologismos – os quais, obviamente, ao fim de algum tempo deixam de o ser (“televisão” e “futebol”, por exemplo, já foram neologismos) –, a estrangeirismos, a bengalas linguísticas (estas características sobretudo da oralidade) e, genericamente, a modismos (que tanto podem ser semânticos como sintácticos. Dois  Exemplos: «incontornável» e «fazer com que»).

 Há, por outro lado, incorrecções gramaticais generalizadas, que sugerem fenómenos de mudança em curso na língua. Refiro-me, por exemplo, ao flagelo da queda das preposições em regências verbais e nominais (ex.: «certificar-se de que», «a noção de que»), ao uso indevido da passiva (um caso paradigmático na actualidade: «as crianças abusadas», em vez de «as crianças vítimas de abuso»), entre muitos outros.

Depois, temos ainda dificuldades no uso de expressões parecidas ou de sinónimos aparentes, que produzem erros contextuais: aderência/adesão; ao encontro de/de encontro a; dever de/ter de; ter de/ter que; eminente/iminente; infringir/infligir; tráfico/tráfego; aura/áurea; virtualidade/virtude; voluntarista/voluntariosa; fluido/fluído; precursor/percussor; arrendar/alugar; solarengo/soalheiro; etc.

 

Qual a justificação que os linguistas encontram para a vulgarização destas incorrecções?

 Eu não sou linguista. Profissionalmente, sou uma agente da norma, o que me aproxima mais dos puristas do que dos linguistas, em termos éticos e práticos. Sei que há alguns estudos linguísticos sobre norma e variação, e sobre inovação lexical, alguns dos quais com aplicações pedagógicas, mas as obras de divulgação que existem sobre este assunto não têm um cunho académico; são guias ou manuais de correcção linguística, com uma forte componente normativa. Os linguistas, enquanto cientistas da língua, tendem a não tecer juízos de valor sobre o seu objecto de estudo, a não tomarem partido relativamente aos fenómenos. Por isso é que devia haver uma entidade normalizadora oficial, um organismo assumidamente interventivo e prático, capaz de se pronunciar a cada instante sobre as inovações e as mudanças na língua, propondo, nomeadamente, soluções ortográficas para neologismos, para nomes de pessoas e de lugares estrangeiros, para empréstimos, estrangeirismos, deturpações, etc.

 

 

Os media são responsáveis por muitos destes vícios? Quais são, na sua opinião, os mais evidentes ou marcantes, utilizados por jornais, rádios, televisão e internet?

 Somos todos responsáveis pela língua, embora uns tenham mais poder de acção e de comunicação do que outros. Sem dúvida que os órgãos de comunicação social estão entre os grandes responsáveis por muitos dos vícios e erros que grassam no português actual. Eles têm o poder não só de gerar erros à escala global, como também de os legitimarem. Por isso, seria tão importante que os agentes de comunicação social tivessem a melhor das formações educacionais e cívicas. À liberdade de expressão dos media deveria corresponder sempre um sentido de responsabilidade irrepreensível. Sem precisarmos de ser utópicos, é possível melhorar muito o panorama actual.

 Os órgãos de comunicação social difundem pelas redes comunicacionais, e a uma velocidade meteórica, constantes atropelos à gramática, vícios de linguagem ou simples modas, que continuamente reforçam e legitimam. Importa, pois, até por razões de bom-gosto, detectá-los e vigiar a sua utilização. Para esse efeito, seria de grande utilidade que todos mantivéssemos uma atitude crítica e questionadora perante a língua que falamos, lemos e ouvimos todos os dias.

 Enquanto revisora, os erros e modismos veiculados pelos órgãos de comunicação que considero «perigosos» não são apenas os que desrespeitam as regras da gramática ou os que subvertem a estrutura e a semântica «natural» da língua. Preocupam-me também, e muito, os que, com aparente respeito pela gramática, se revelam, afinal, autênticas pragas. Refiro-me a uma casta de expressões que encobre erros quase imperceptíveis, formas que colonizam a língua, asfixiando «espécies» preexistentes e contribuindo para o empobrecimento geral do vocabulário e da sintaxe. Algumas dessas formas ou expressões careceriam de uma urgente acção de erradicação, outras apenas de um uso mais parcimonioso.

 

Alguns exemplos de expressões de que se usa e abusa:

 Evento; conceito; evacuar (pessoas, em vez de espaços); realizar (na acepção imprópria, e contaminada pelo inglês, de «ter consciência, ter entendimento ou aperceber-se de que»); casual (por contaminação do inglês, com o sentido de «informal», «despreocupado» ou «descontraído»); alegado; massivo; a muleta do ex- a torto e a direito, etc.

Chavões:

 Altamente; basicamente; é assim...; exactamente; não (usado como bengala); quer dizer...; pronto(s); portanto; delicioso; espantoso; lindo; espectáculo; brutal; maravilhoso, etc.

Erros sintácticos:

  • «O gosto que eu gosto» (omissão anómala da preposição regida pelo verbo);

  • «Eu vi ela» (confusão no uso do pronome pessoal com função de sujeito em posição de objecto directo ou de objecto indirecto);

  • «Tenho um amigo meu»;

  • «O facto *do [f. correcta: de o] erro estar cada vez mais generalizado» (contracção da preposição e do artigo em orações completivas do tipo infinitivo);

  • «fazer com que» (o verbo fazer é transitivo directo nas acepções em que costuma ocorrer esta expressão; é também frequente ser abusivamente utilizado, o que contribui para o empobrecimento da língua);

  • «enquanto que» (o «que» não pertence estar ali);

  • «quanto muito» (em lugar de «quando muito»);

  • «tratam-se de» (em lugar da construção impessoal «trata-se de»);

  • «haviam» e «tinham havido» (em lugar da construção impessoal «havia» e «tinha havido»); etc.

 

Por último, diga-me como quer ser apresentada. Gostaria que referisse o facto de ser responsável pelo curso da Católica.

 Sou revisora profissional e formadora na área da revisão e da edição de texto. Se quiser, pode referir que dou aulas no Curso de Pós-Graduação em Edição – Livros e Novos Suportes Digitais, bem como na Formação Avançada em Revisão e Edição de Texto, ambos ministrados na Católica. Vejo-me acima de tudo como uma operacional, alguém que trabalha no terreno.

Ana Catarina Pereira

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