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Edgar Pêra

A personagem Marialva no cinema português

É um dos mais controversos realizadores portugueses, bem recebido pelos críticos mas praticamente invisível para o circuito comercial. As influências da Escola Clássica Soviética e do Expressionismo Alemão parecem evidentes, associadas a uma crítica social intensa e corrosiva. Apesar disso, Edgar Pêra insiste: “Eu gosto essencialmente de determinados filmes de certos realizadores.” Não se revendo em qualquer tendência ou estética contemporânea, percorre um caminho singular, marginal e independente. Os temas escolhidos e os momentos vivenciados constituem a sua matéria-prima, pelo que, antes de começar qualquer filmagem, estuda intensamente todos os autores e personagens envolvidos, captando a essência dos mesmos através da liberdade com que filma. Mas, por se tratar de cinema e não de jornalismo, a realidade captada é, mais tarde, deformada através de processos de montagem criativos e experimentais. Em todos os seus filmes, Edgar Pêra recusa-se a escravizar o som à imagem, deturpando vozes e ruídos e estabelecendo uma relação de provocação/interrogação com o espectador.

 

A Janela – Maryalva Mix

 

Mas por que razão nos lembrámos de entrevistar Edgar Pêra numa edição especial sobre Marialvas? Corresponderá o realizador ao estereótipo de gingão, adepto convicto da poligamia e machista inveterado? Não, de forma alguma. Da sua carreira cinematográfica fazem parte alguns filmes polémicos como “25 de Abril Aventura para a Demokracya” (2000), “És a Nossa Fé” (2004) ou “Arquitectura de Peso” (2007), mas também o estonteante “A Janela – Maryalva Mix” (2001). Nele, António é um homem de Lisboa, morador do bairro da Bica, fadista e amante de várias mulheres. Vendedor de tudo e de coisa nenhuma, é observado por um olho misterioso que assume o protagonismo do filme. Logo de início, o espectador é confrontado com algumas questões: estará António vivo ou terá sido morto à facada? Tratar-se-á de um homicídio motivado por uma violenta crise de ciúmes de uma das vítimas dos seus encantos? Quem é, afinal, António?

 

Interpretado por um elenco de luxo que inclui Nuno Melo, Manuel João Vieira, João Didelet, José Wallenstein, Miguel Borges e Nuno Bizarro, António é um sedutor de “trazer por casa” (ou pelas ruas do típico bairro alfacinha). No dia-a-dia, conquista várias mulheres, todas elas interpretadas por Lúcia Sigalho, o que, por sua vez, nos faz questionar os motivos que levaram a esta inversão de papéis. Por que razão um único homem é interpretado por vários actores em paralelo com uma única actriz, que corresponde a várias mulheres seduzidas? Para o realizador, esta terá sido uma espécie de vingança da Mulher sobre todos os Marialvas: “Eu comecei o filme descobrindo as várias personagens que a Lúcia Sigalho ia improvisando, o que constituiu um desafio para mim - fazer corresponder uma divisão à multiplicação que ela produziu. Eu assumi que as personas do António são fracções ou aproximações a uma pessoa, e não propriamente pessoas. Esse Marialva, quando se manifesta, é sempre menos do que uma pessoa, uma vez que se encontra muito dependente da relação de poder, o que diminui ou elimina outras facetas da sua personalidade. Aquilo que me interessou quando fiz a Janela foi exactamente pegar nessas facetas e desdobrá-las por vários actores que representam uma só pessoa, em contraponto com as personagens da Lúcia Sigalho.”

A ideia de realizar A Janela – Maryalva Mix surgiu assim, como habitualmente, do prazer da descoberta. O guião foi sendo construído em paralelo com as improvisações de papéis e diálogos interpretados pela actriz principal uma vez que, na opinião de Edgar Pêra, os actores devem fazer parte de todos os processos criativos, enriquecendo o filme sobre todas as perspectivas: “Trabalho sempre em colaboração com eles; encaro-os mais como artistas do que como executantes.” Desta forma, à ideia de diversidade feminina, o realizador contrapôs um afunilamento da personagem masculina: “Esta opção tem um lado formal, mas também podemos dizer que tem um lado ideológico.” Existindo uma série de desdobramentos do Marialva, Edgar Pêra pretendeu criar um personagem que desprezasse as mulheres mas que, ao mesmo tempo, descuidasse o seu destino, tornando-se vítima de si próprio. Em palavras suas, o filme descreve-se como a personificação de “várias mulheres com uma matriz, enquanto eles são a mesma pessoa com matrizes diferentes.”

 

Para Edgar Pêra, a figura do Marialva não é especificamente portuguesa, sendo potencialmente reconhecível em qualquer parte do mundo: “A condição da mulher enquanto vítima de exploração, numa relação de poder com o homem, está sempre sujeita a uma série de situações. A questão do Marialva tem uma tonalidade portuguesa, representada pelo lado mais castiço, o que, no caso do filme, é acompanhado de uma estética fadista. Em Portugal, está relacionada com uma tradição de mal tratar a mulher e considerá-la uma pessoa de segunda. Mas penso que a única coisa especificamente portuguesa no Marialva é o nome.”

 

Em 2001, quando foi lançado, A Janela – Maryalva Mix realizou o habitual circuito dos festivais de cinema nacionais, tendo atingido os 10 mil espectadores no circuito comercial. Foi também seleccionado para os festivais internacionais de Locarno, Montreal, Ljubliana e Frankfurt e nomeado para os Globos de Ouro da Sic (melhor filme, actriz e actor principais).

 

Take 2: O Barão

Em 2008, onze anos passados sobre a rodagem deste Maryalva Mix, Edgar Pêra volta a trabalhar o tema. Baseada na obra “O Barão” de Branquinho da Fonseca, a longa-metragem que o realizador se encontra presentemente a filmar revela um novo personagem centrado nas relações de poder exercidas (não apenas, mas também) sobre as mulheres. Para Edgar Pêra, existe uma continuidade entre as duas obras, correspondendo os personagens centrais – o António e o Barão – aos dois pólos de machismo da sociedade. Na sua opinião, o processo de humilhação que personificam é semelhante, embora se encontre em níveis distintos: “No fundo, o António é um daqueles sargentos que humilham os soldados, mas que têm toda uma hierarquia acima deles, enquanto o Barão espezinha toda a gente.” O último personagem reflectirá assim uma sociedade contemporânea que se torna, no entender do realizador, cada vez mais ditatorial.

 

Existem, no entanto, alguns aspectos que distinguem os dois filmes. No primeiro, Edgar Pêra partiu de cenários realistas para criar abstracções, enquanto em O Barão, parte de cenários altamente teatrais (que constituem a própria abstracção) para chegar às emoções. A idade e a experiência parecem ter-lhe trazido esta sensibilidade: “Sinto que já não tenho tanto medo de lidar com as emoções. Na Janela eu colocava-me dez passos atrás; as coisas tendiam para a farsa e interessava-me mais ironizar do que propriamente envolver-me na situação. Hoje em dia, passados todos estes anos, é natural que pense de outra forma e que esteja muito mais interessado na relação emocional com o espectador.” Para além disso, a mudança dos tempos reflecte-se nos recursos disponíveis: “Com todas as novas tecnologias vou poder fazer uma espécie de filme ‘rústico sofisticado’; vou usar a linguagem dos movimentos de câmara associados às gruas e a uma certa movimentação pairante, numa realidade vampirizada”, deixa antever o realizador.

 

Para Paulo Cunha, investigador da Universidade de Coimbra e especialista em História do Cinema Português, os filmes de Edgar Pêra estabelecem precisamente esta relação com o espectador. Não pretendendo retratar a realidade, assumem uma interpretação livre e alternada do que o cineasta observa, o que, salienta, “não impede Pêra de convocar um certo imaginário popular e iconoclasta para fazer uma interpretação muito satírica, burlesca, sarcástica e caótica da sociedade portuguesa contemporânea.”

 

Na opinião do investigador, o realizador efectua “um trabalho de pesquisa constante, de desafio às mais convencionais e tradicionais formas de comunicar através da linguagem cinematográfica. Ele exercita permanentemente os limites e as formas disponíveis, não rejeitando qualquer tipo de géneros (longas, curtas, documentários, videoclips, cine-concertos, animação) ou de formatos (35mm, super 8, digital, TV).”

 

Com expectativa, aguarda-se assim a chegada de mais um Marialva ao cinema português, novamente pelas mãos de Edgar Pêra.

Texto de Ana Catarina Pereira

Fotografias de José Miguel Soares

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