Universal Concreto
Ana Catarina Pereira
Encontro improvável
No mesmo ano em que Maria João celebra 25 anos de carreira com o lançamento do álbum Chocolate, os Buraka Som Sistema gravam o primeiro álbum Black Diamond, são distinguidos como artistas do ano pela MTV e invadem o país com um ritmo novo. A Magnética marcou um encontro entre o jazz e o kuduro, às 16 horas de uma tarde lisboeta, algures na esquina de uma comunidade lusófona. Falámos da arte como factor de mudança, de emoção e de prazer.
Consideram-se músicos portugueses, lusófonos ou do mundo?
(Maria João: MJ) Metade da minha família é de Moçambique, mas eu sou portuguesa. É aqui que eu vivo, que tenho o meu filho, que faço música, que tenho a minha casa, que ando de carro. A língua que eu oiço é esta, a minha casa é Portugal e, portanto, eu sou um músico português.
(Kalaf: K) Eu não sou bem músico: eu expresso-me musicalmente. Ser músico é um sonho antigo, por esta ser uma arte que converge tantas outras. Assumindo a performance, podes adoptar uma expressão teatral, ter uma relação muito intensa com a literatura e um flirt com o vídeo e com a imagem. Como indivíduo, sou angolano e, como artista, talvez faça parte daquilo a que se chama a lusofonia. No último ano tenho andado a descobrir a minha posição enquanto músico, indivíduo e artista lusófono no mundo. É como se estivesse a crescer.
Como definem o público português?
(MJ) É fixe! Eu gosto muito do público português. É aquele que entende tudo aquilo que eu digo. Os brasileiros também entendem, mas um bocadinho pior. É um público muito carinhoso: faço isto há 25 anos e eles estiveram sempre lá para mim.
(K) É diferente cantares para alguém que te conhece e que compreende exactamente cada oscilação da tua voz. É como se entendesse o teu silêncio: a desvantagem lá fora é o que silêncio é visto como um engano. O público português é o primeiro. Não gosto de dizer que é o melhor mas é o primeiro, sem dúvida.
Considera-se uma cantora de jazz, ou acha que esta é uma definição demasiado redutora?
(MJ) É talvez a definição que me está mais próxima. Acima de tudo eu gosto de me considerar um músico e só depois um cantor. Mas se tiver de me definir com algum estilo é o jazz, por causa da liberdade do improviso.
E o teu estilo?
(K) Eu comecei a fazer música por reacção. Cheguei de Angola em 1994 com esse desejo e comecei a ouvir rap, mas achei que as histórias que aquelas músicas contavam não tinham princípio, meio e fim. Talvez por vir de África, estou muito familiarizado com aquela coisa do «era uma vez». Peguei na caneta e comecei a escrever. Depois comecei a envolver-me com a música electrónica e com o jazz. Finalmente, acho que a vontade de dançar e de convidar pessoas para dançar me fez produzir música de dança. À minha volta, construí um pequeno núcleo de pessoas capazes de criar e de fazer acontecer. Comecei este projecto basicamente por ser angolano e por entender que em Angola estava a nascer um ritmo de dança que não devia nada aos outros géneros. O facto de sermos os Buraka, de produzirmos esta música e de a levarmos aos clubes de dança não foi uma coisa muito pensada, foi uma evolução natural. Nós não nos fechámos no sentido de fazer música portuguesa ou africana. Fazemos música, e toda a música tem pontos em comum. Entender isso é o que, na hora da decisão, vai permitir que possas comunicar ou fazer uma coisa voltada apenas para o teu umbigo.
Porque é que com uma comunidade africana tão grande em Portugal, só agora começa a aparecer uma banda de Kuduro com a vossa notoriedade?
(K) Porque é que só agora Obama ganhou as eleições nos Estados Unidos? Talvez ainda não tivesse chegado o momento. Acho que a grande mudança ocorreu quando comecei a ver miúdos brancos a ouvir kizomba. Os maiores dançarinos de kizomba que eu já conheci até hoje são brancos. Os cds de Kizomba que estão nos tops são comprados, sobretudo, por brancos, da mesma forma que para elegeres Obama não contas apenas com os votos dos africanos. A partir do momento em que despertas para a kizomba, despertas também para outros ritmos africanos. Para além disso, a comunidade cabo-verdiana em Portugal é fortíssima, desde os anos 50. Músicos como Tito Paris e Danny Silva são o cimentar desta relação: se eles não tivessem existido, hoje não estarias a ouvir Buraka com tanta abertura. Houve, sem dúvida, uma evolução.
Acham que o mercado português é difícil de conquistar? Sentem que a aceitação nacional aumenta quando já existe algum reconhecimento internacional?
(MJ) Eu já achei. Houve uma altura em que isso acontecia: primeiro éramos apreciados fora de portas e só depois ganhávamos importância cá dentro. Se calhar, com o tempo, começámos a gostar mais de nós próprios. Talvez os portugueses tenham começado a aprender a virar-se para dentro.
(K) Eu acho que isso foi uma tendência. Mas, por exemplo, quando observas o público que segue a Mafalda Veiga (que não tem nenhuma expressão fora de Portugal) percebes que há muitas pessoas a ouvirem e a vibrarem com aquelas canções, que se identificam com as histórias daquelas músicas. Se tu não fizeres esta ligação de nada serve teres um público lá fora. Mas eu continuo a achar que o mais importante para a mudança do mercado vem da educação. Nada cai do céu: nenhum artista aparece e começa a fazer sucesso. O mais importante é ensinar as pessoas a ouvir música, sensibilizá-las para a arte.
(MJ) Isso vem da audição e da possibilidade das pessoas ligarem o rádio e ouvirem: esta é a cultura oral. O maior meio de comunicação que existe é o ar: tu ouves, vês e, de repente, começas a habituar-te àquela linguagem, ela começa por se tornar familiar e, quando dás por isso, já ganhaste afecto. De facto, nada é muito imediato (a não ser que tenhas uma campanha publicitária medonha, como muitas vezes se passa lá fora) e, por essa razão, não há nada melhor do que o hábito. Se as coisas forem realmente boas, o hábito gera o afecto.
(K) Sim, o gosto pode melhorar-se. Antigamente via muitos jornais a fugirem do fado. Hoje, vejo as pessoas a interessarem-se pelo fado, e isso é muito curioso. É interessante que alguém que podia estar a ouvir Madonna ou Britney Spears de repente se interessa por Ana Moura ou Mafalda Arnauth. Para mim, isto é a educação do gosto. No final de contas, há uma intenção comum a todas elas que é a de comunicarem, expressarem-se artisticamente.
Se pudessem mudar alguma coisa na política cultural portuguesa o que seria? Se um dia fossem ministros da Cultura qual seria a vossa primeira medida?
(MJ) Primeiro tentava sacar mais dinheiro ao Governo. Eu acho que não existe uma política cultural em Portugal: falta dinheiro. Era importante investir no futuro, nos miúdos, em vez de se gastar imenso dinheiro em festivais que só trazem músicos estrangeiros, onde não há nenhuma interacção com músicos nacionais. Isto não deixa nenhuma marca e não melhora em nada o nosso futuro enquanto artistas. Em termos de política cultural, seria necessário haver dinheiro, porque a cultura é o rosto de um país, é isto que vai lá para fora, é esta a tua identidade. Também é importante acabar com esta coisa enraizada que são os cortes nos orçamentos culturais sempre que estamos em crise. Isto é uma grande falha de visão em termos de futuro, em termos do lugar de Portugal no mundo.
(K) Eu concordo muito com o que a João disse. Normalmente o músico é, por natureza, uma pessoa muito egoísta, que se concentra apenas na sua arte, no seu umbigo. Eu tento não me colocar dessa forma e não acreditar só na música, mas acho que as pessoas estão muito pouco sensíveis. Nos tempos modernos temos que ver sangue para nos emocionarmos. Se um jornalista chega e diz que há mortos na Faixa de Gaza ninguém liga, mas se tivermos pernas arrancadas e cabeças partidas começamos a perceber que há realmente mortos na Faixa de Gaza. Essa coisa do sensacionalismo ou da perda de sensibilidade pode ser contrariada: a cultura pode ajudar a devolver a sensibilidade às pessoas. Existe uma grande necessidade de tornar as pessoas mais emotivas e solidárias, precisamente através da música, do teatro e da arte.
(MJ) O problema também é que as pessoas estão sem dinheiro, o que lhes retira tempo para si próprias. Anda-se muito depressa, é preciso ir buscar os filhos, passar a ferro, pagar a hipoteca da casa, os empréstimos do banco… e isto é avassalador porque impede que as emoções possam tomar conta de nós. As pessoas estão tão consumidas em ganhar a base da pirâmide (encher a barriga, pagar a casa e a escola) que só depois se podem concentrar nelas próprias e nas suas necessidades enquanto indivíduos.
Como músicos e cidadãos que viajam pelo mundo inteiro quais são as vossas maiores preocupações sociais? Se pudessem eliminar uma injustiça social qual seria?
(K) A ignorância. O que mais me aflige enquanto indivíduo é a ignorância, porque muitas vezes não é consciente, é força das circunstâncias. Estás diante de alguém que realmente não teve acesso à informação, foi privado dela. O que fazes com a informação que recebes é decisão tua (podes decidir não usar, ficar no obscurantismo) mas para mim a grande injustiça é realmente não disponibilizares o conhecimento.
(MJ) A mim faz-me muita impressão que muitas pessoas não tenham o que comer, sobretudo quando confrontada com os desperdícios europeus. Em África há pessoas que morrem de fome e isto é uma realidade que não nos passa pela cabeça.
Porque acha que os Buraka estão a ter todo este sucesso nacional e internacional?
(MJ) Porque eles falam a mesma língua que uma enorme fatia mais nova da nossa sociedade. Este projecto é feito com as vísceras, com a razão, o coração e o intelecto. Eles vieram ocupar, e muito bem, um buraco que havia na música portuguesa, onde não estava ninguém que comunicasse desta forma, que influenciasse e dissesse as coisas desta maneira. Eu acho muito merecido e espero que eles sejam muito felizes.
Porque achas que a Maria João tem tido tanto apoio por parte de um público que gosta do seu trabalho há 25 anos?
(K) Eu tenho uma grande paixão e respeito pelos músicos que se expressam na linguagem do jazz. Como na música clássica, os artistas de jazz exigem muito do ouvinte. Não é uma coisa que se possa ouvir de ânimo leve. Os músicos que continuam a fazer discos de jazz, numa altura em que é tão difícil gravar, são de uma coragem avassaladora e é exactamente isso que me estimula e inspira. O jazz é algo que está reservado a pessoas que acreditam nessa forma estranha que é a música enquanto expressão artística.
Ana Catarina Pereira