Universal Concreto
Ana Catarina Pereira
Malditos portugueses
Ela é um dos rostos mais jovens e mais bem sucedidos da política nacional. Personalidade vincada, ideais definidos e metas bem traçadas revelam uma mulher de esquerda, feminista e crítica da sociedade contemporânea. Este último traço aproxima-a de Adolfo Luxúria Canibal, o letrista/vocalista/actor/jurista que dá a cara por um dos mais originais projectos musicais dos últimos 30 anos. Os Mão Morta e a política nacional serão malditos? Ou malditas serão as condições em que a cultura nacional se tem vindo a desenvolver?
Joana Amaral Dias
Quem são as tuas referências malditas?
Fernando Pessoa e Amadeo de Sousa-Cardozo, para falar de dois nomes com impacto recente na sociedade portuguesa. São dois dos mais icónicos: eram artistas e intelectuais “outsiders”, que procuravam ser “insiders”. Fernando Pessoa passou a vida a tentar ter reconhecimento e mérito, esforçou-se imenso para publicar e para ter dinheiro, sempre a procurar ser um “insider”.
Isto é o contrário do que se passa hoje em dia: os intelectuais, mesmo alguns do poder, são “insiders” do sistema e fazem uma certa pose. Houve uma grande mudança a esse nível. Concomitante a isso, há também uma definição de “marginal” que é aceite. O Manoel de Oliveira, por exemplo, é um marginal que corresponde aos cânones que foram definidos pela sociedade. Para além disso, temos uma franja altamente residual, constituída por intelectuais, artistas e pessoas de outras áreas, que não correspondem sequer ao estereótipo de marginalidade que é aceite. Esses não são excluídos, mas tornaram-se completamente invisíveis na sociedade, perderam a expressão e não têm qualquer protagonismo nos “media”. E é nesse reduto de artistas ou intelectuais que pode residir uma matriz de mudança.
Existe uma relação entre a arte e a loucura?
Não, a visão de que todos os artistas são loucos (ou a de que todos os loucos têm uma veia artística) é completamente romântica. Há artistas que são pessoas comuns ou banais (normais não diria, porque não sei o que é que isso da normalidade). A loucura é, por definição, o empobrecimento da mente. Quando falamos de loucura, no sentido clínico do termo, falamos de uma violentíssima desertificação da actividade cerebral, da criatividade do doente e da sua capacidade de iniciativa. A arte é precisamente o oposto, é a possibilidade de abrir janelas e novas perspectivas. Pela minha experiência clínica, penso que a arte pode ter um potencial terapêutico, mas não pode ser aplicada como uma panaceia ou um medicamento generalista que serve para qualquer situação.
A maioria dos artistas não encara a arte como um veículo de mudança do mundo, considerando que esse papel cabe à política, à ciência e à educação.
Temos que admitir que a ciência e a tecnologia foram os grandes motores da mudança no século XX, embora possamos sempre dizer que, se não houvessem políticas que atribuíssem verbas aos laboratórios, isso nunca teria acontecido. Mas a arte também catalisa mudanças, de uma outra forma. Não quer dizer que o artista tenha que partir com o objectivo de mudar o mundo (nem sequer de se mudar a si próprio) mas, não sendo este o seu ponto de partida, ele pode ser uma consequência. Se olharmos para as grandes manifestações artísticas do século passado e para as poucas que já existem do século XXI, vemos que algumas delas tiveram consequências bastante importantes em determinados níveis de mutação do tecido social.
Como é que definiras a política cultural dos últimos anos?
A nossa política cultural não existe, é uma ficção. Eu defendo, pelo menos, 1% do Orçamento de Estado para a cultura, sendo um sector essencial, a par da saúde e da educação. Para dar um exemplo de um maldito: a exposição do Amadeo de Sousa-Cardozo na Gulbenkian, há dois anos, foi bem divulgada e teve uma audiência extraordinária. O pretexto de “termos que dar ao público aquilo que ele quer” (e a mensagem que aí subjaz é a da cultura pimba) é uma mentira, porque o público pode querer outras coisas. No panorama geral, nós temos bons artistas. Temos uma área em que até somos bastante vanguardistas e pioneiros: o teatro experimental. Nas Artes Plásticas também temos artistas muito conceituados, o que não temos é a possibilidade de oferecer condições a estes artistas. A Paula Rego é um exemplo, mas há muitos outros. O que é que, apesar de tudo, vai ficando? O escritor, porque o trabalho dele é completamente solitário, não tem equipa e não precisa de grandes meios. Mas, em todas as outras artes que precisam de mais meios, como a pintura, já para não falar do cinema (em que estão envolvidas fortunas), as pessoas têm que procurar outros mercados, até porque o artista, como qualquer outra pessoa, precisa de comer.
Como defines a arte de fazer política?
É sempre o fio da navalha. É construir uma solução com os recursos disponíveis (humanos, logísticos, etc.), que podem ser muito escassos. A política é encontrar soluções para problemas, ou mesmo tender para uma determinada utopia; é fazer omeletas sem ovos, é uma arte do impossível.
Acreditas que é a melhor forma de melhorar a sociedade em que vivemos?
Não conheço outra. Toda a sociedade ocidental, e a Europa em particular (Portugal não difere substancialmente desse contexto) está em dissolução. Os valores fundadores do tecido social estão a desaparecer aceleradamente. Não é à toa que temos motins nas periferias de Paris, ou aqui no bairro da Bela Vista, ou atentados terroristas internacionais. A maior parte de nós vive no seu país e no espaço europeu como “emigrante”, sentindo-se política e socialmente alienado.
Foi isso que conduziu ao afastamento dos cidadãos da política?
Esse é um dos sintomas. Nos EUA, excepção feita à eleição de Obama, verifica-se exactamente o mesmo. Esta elevadíssima abstenção, que não é só portuguesa, é a expressão disso mesmo: as pessoas vivem na sua terra como estrangeiros, excluídos e marginais.
Qual o lugar do feminismo no século XXI?
O feminismo é um movimento que tende à igualdade entre homens e mulheres, portanto ele mantém toda a razão de ser. Mas, hoje em dia, tornou-se um insulto: uma mulher que diga que é feminista vai sempre ouvir outras mulheres e homens dizerem-lhe que isso é uma “coisa do passado”, que já não faz sentido. E se, por acaso, não for uma mulher bem sucedida ou atraente, é encarada como uma frustrada. Há pouco tempo, saiu um estudo da Comissão para a Igualdade que mostra que, em Portugal, as mulheres trabalham mais 16 horas por semana em actividades domésticas do que os seus companheiros ou maridos. Se fizermos as contas, são 64 horas por mês. Ao fim de uma vida, são 25 anos de trabalho gratuito e não reconhecido socialmente, que retirou, à mulher, tempo para investir na carreira, para se valorizar, ter formação, divertir-se, descansar, etc., enquanto o companheiro ou marido esteve 25 anos a fazer isso mesmo. Daí que, hoje em dia, saem mais raparigas do que rapazes das universidades, muitas vezes com melhores notas, mas, ao fim de dez anos, essa vantagem já se inverteu: são eles que estão nos centros de poder empresarial, científico, político e económico, e elas foram desaparecendo da competição.
Como é que a situação se pode inverter?
Como psicóloga, por vezes deparo-me com situações em que certos pais, bastante educados e que não se consideram machistas, dão uma educação aos seus filhos que começa, muito precocemente, a estabelecer diferenças entre os sexos. Os brinquedos de exploração do mundo (globos terrestres, puzzles de estimulação cognitiva, …) para os meninos e os brinquedos da domesticidade (bonecas, maquilhagens, adornos físicos) para as meninas. Depois, a publicidade também é um dos pontos nevrálgicos desta ideologia machista dominante: os anúncios têm papéis muito rígidos para as mulheres e para os homens. O homem é o chefe de família - é ele que conduz, que faz dinheiro e que usa determinados símbolos de poder e de status. A mulher anuncia o detergente, ou aparece de minissaia, ao lado de um carro para o vender: ou é dona de casa ou objecto sexual. A publicidade para crianças não é esta, mas mantém exactamente a mesmo rigidez de papéis. Com tudo isto, aos rapazes é vedada a exploração da sua própria afectividade e da parte mais cuidadora, e às raparigas é vedada a parte mais exploratória do mundo. Hoje em dia sabe-se que, ao contrário do que foi apregoado durante muitos anos, não existe nenhuma diferença entre o cérebro de um homem e o de uma mulher. Aquilo que existe é uma diferença de educação muito acentuada, com aquilo a que alguns cientistas chamam de “excisão cerebral feminina”, em que as células são impedidas de desenvolver determinadas competências que, à partida, teriam condições iguais para desenvolver.
Adolfo Luxúria Canibal
Quem são as tuas “referências malditas”?
A adjectivação de “malditos” é muito subjectiva, mas normalmente associo-a mais a escritores do que a qualquer outro tipo de profissão. Penso em nomes como o Lautréamont ou, no nosso espaço, o Luiz Pacheco.
Costumas utilizá-las no teu processo criativo?
No meu processo criativo, estas referências poderão estar inconscientes ou latentes, mas não escrevo letras para canções a pensar “vou fazer isto porque o Luiz Pacheco ou o Lautréamont também fizeram”, embora todas as nossas vivências, incluindo as nossas leituras, se reflictam naquilo que fazemos.
Consegues separar o artista Adolfo Luxúria Canibal do jurista Adolfo Morais Macedo?
Sim, são trabalhos diferentes que não se confundem de maneira nenhuma. Enquanto jurista, faço um trabalho técnico; ser vocalista ou escritor de canções é um trabalho que desenvolvo normalmente nas horas vagas e com outros meios. É evidente que a pessoa é sempre a mesma, não há uma separação esquizofrénica de “agora sou isto e a seguir sou aquilo”, nem sequer inconsciente.
O tratamento da sociedade portuguesa para com o vocalista dos Mão Morta e para com o jurista é diferente?
A sociedade portuguesa é muito conservadora e tem tendência a colar rótulos, mas como estes são dois meios que só se tocam nas franjas, não tenho esse tipo de problemas. A maior parte das pessoas com quem lido num lado, não conhece o outro. Quando uma pessoa com quem tenho relações profissionais jurídicas vem a saber que eu sou o Adolfo Luxúria Canibal, passamos a ter uma relação diferente, porque este é um dado suplementar, para além de toda a história que a pessoa já criou comigo. É uma agradabilidade para essas pessoas saberem uma coisa que ainda não sabiam, mas nessa altura todo o relacionamento comigo já se encontra estabelecido.
Que análise fazes da sociedade portuguesa contemporâneo?
A sociedade actual é medíocre, funciona a dois tempos, grosso modo. Tem a grande cidade - o mundo urbano que está basicamente em Lisboa, um bocado no Porto e com resquícios em outras cidades como Coimbra e Braga. Depois, tem uma cidade rural, ou neo-urbana, mas ainda com uma ruralidade muito intensa. É uma sociedade que tem pouco pensamento sobre o que é o bem comum e o que é trabalharmos em conjunto. É uma sociedade do “chico-espertismo”, do “cada um por si” para atingir o objectivo individual, independentemente do mal que se faça a terceiros ou àquilo que é de todos, incluindo dele próprio. É uma sociedade pouco informada e, sobretudo, pouco formada, com poucas apetências para o conhecimento e para o funcionamento.
O que é que poderia inverter essa tendência?
É difícil, acho que chegámos a um ponto de não retorno. Todas as pessoas competentes, honestas e de boa-fé estão alheadas: fogem de Portugal ou não singram, não apostam na vida pública porque são enxovalhadas e ultrapassadas por medíocres. O problema é que só essas pessoas poderiam dar a volta à situação.
Sentes isso em todas as áreas?
Na política é onde se sente mais, porque é a área que mexe mais dinheiro e onde se enriquece mais depressa. Acontece muito menos em profissões onde as pessoas estão “por amor à camisola”, mas aí, normalmente, são subalternas e de áreas que não têm qualquer peso económico ou político.
A arte poderia ter um papel activo na mudança de valores?
A arte podia, pelo menos, ter um papel de alerta, e não propriamente de mudança. Mas a arte também é um meio muito permeável: a análise do que é bom e mau é sempre muito subjectiva. Não é uma profissão técnica, de maneira que é muito mais fácil ludibriar o valor das coisas, do que se faz, do que se pensa ou do que se expõe. Depois, não funciona tanto com a miragem do lucro nem com a proximidade ao poder, mas funciona muito (e isso tem mais ou menos o mesmo peso e a mesma capacidade de corrupção) com a vaidade pessoal, pelo que também é muito permeável a esse tipo de incompetências e de mediocridades.
Apesar disso, há cerca de 20 ou 30 anos os artistas malditos portugueses não tinham grande divulgação mediática. A música, a literatura e o cinema nacionais começam a ser “mainstream”?
Eu penso que, actualmente, a internet dá exposição mediática a toda a gente. O cinema português sempre teve alguma visibilidade no estrangeiro, sobretudo em França, mais do que em Portugal, com Manoel de Oliveira, Teresa Villaverde, Pedro Costa, João César Monteiro e outros novos nomes que ninguém conhece em Portugal mas que, efectivamente, são premiados em Cannes e que têm filmes em cartaz, em Paris, durante meses. Estes são fenómenos que ganham continuidade, não são nulos. A nível de música, houve uma época, nos anos 80, em que começou a sentir-se maior curiosidade pela produção nacional. Depois disso, nos anos 90, a exposição mediática começou a regredir e hoje a visibilidade é a da internet: mas isso é a visibilidade de tudo, sobretudo do que não vale nada.
Achas que não têm surgido projectos interessantes em Portugal?
Têm: a nível criativo estamos numa das melhores fases dos últimos 30 a 40 anos, mas os projectos não têm visibilidade.
Também são um pouco malditos, por essa falta de visibilidade. Que exemplos citas?
Não sei se são estes projectos que são malditos ou se é este país que é maldito. Por exemplo, em Braga, há toda uma movimentação de pequenas bandas a editar discos: Peixe Avião, Mundo Cão, Monstro Mau… São todos de áreas diferentes, mas com propostas válidas e muito interessantes. Há todo um frenesim que acontece na cidade mas que não tem qualquer eco, a não ser no meio musical bracarense. Coimbra também está com um frenesim desde há alguns anos, que teve algum eco na década de 90, com as três principais bandas que saíram dos “Tédio Boys” – os “Wraygunn”, os “d3O” e os “Bunnyranch”. Mas, depois disso, já aconteceram e estão a acontecer muitas outras coisas. Estão a surgir pequenas bandas que, efectivamente, não têm divulgação. Uma pessoa que não se interesse particularmente por música e que seja apenas informado pelos “media” não sabe nada do que se passa.
Mas isso não terá a ver com o facto de, ao contrário dos espanhóis, os portugueses não consumirem a sua própria produção cultural?
Nós sempre sentimos vergonha de ser portugueses. Achamos que os portugueses são sempre piores do que os estrangeiros: são piores em muitas coisas, são tão bons em muitas outras e, às vezes, são melhores. Mas há esse preconceito, que faz parte da nossa mediocridade.
Ana Catarina Pereira