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Maria Keil

 

O que dizer de uma Mulher que foi pintora, desenhadora, ilustradora e designer, fez cerâmica, azulejaria, publicidade, cenografia e figurinos? O que dizer de uma Mulher onde a simplicidade e a genialidade se conjugam de uma forma desconcertante, num tempo em que egos e auto-estimas atingem, tantas vezes, proporções desmedidas? O que dizer de uma Mulher com 94 anos, que nos recebeu de braços abertos, deixando um falso alarme para a possibilidade de já nada dizer de interessante? Uma entrevista onde nos deixámos conduzir por um discernimento luminoso e onde a velocidade dos dias que correm não teve lugar. Parámos para pensar na crueza da falta de esperança ou no realismo difícil de contradizer.

Com que profissão se costumava definir?

Eu não tenho profissão nenhuma. Eu trabalho numa determinada coisa, mas não é uma profissão. O que é uma profissão? Um ofício para ganhar a vida com horas de entrada e saída? Isso, eu não tenho. Não tenho a profissão de pintora ou desenhadora, eu faço os trabalhos que me encomendam ou pedem para fazer, mas é uma coisa particular, sem papel passado, digamos.

 

Mas houve alguma arte com que se tivesse identificado mais?

 

Isso é muito difícil responder, porque as coisas que eu tenho feito, não fui eu que escolhi. Dizem-me assim: “faça um livro para crianças deficientes”, e eu não posso fazer um livro com movimento, porque a criança não vai poder usar. Nós temos que nos pôr dentro daquilo que nos dão para fazer.

Costumava dizer que não se considerava artista…

Eu não disse nada disso!

 

Frequentou a Escola de Belas Artes. Porque é que nunca acabou o curso?

 

Não valia a pena. Cá fora, com o convívio dos profissionais, aprendia-se mais.

 

Acha que a arte não se pode ensinar?

Pode, não é uma coisa assim tão vaga e livre. Aprende-se e ensina-se.

 

Em 1937, esteve presente na montagem e decoração da estrutura do Pavilhão Português, projectado pelo seu marido e apresentado na Exposição Internacional de Paris. Como foi essa experiência?

Foi um trabalho que havia para fazer e fez-se. E fez-se de tudo, desde varrer o chão até pintar a parede, tudo isso fez parte do trabalho.

Mais tarde, na década de 40, dedicou-se à publicidade e fez os anúncios da espartilharia “A Pompadour”.

Não me fale nisso. Como é que se dá importância a uma coisa dessas? Isso não é nada, é trabalho que tem que se fazer todos os dias, mas não tem nada que ver com arte ou com ofício.

Na mesma época começou a fazer ilustração infantil. Era um trabalho que gostava mais? Tentava sempre transmitir alguma moral?

Essa pergunta é muito difícil, porque a gente não trabalha assim por acaso. Trabalhamos pensando, estudando o que se quer fazer, metendo-nos dentro dos assuntos, não é só “despachar”. Ninguém trabalha só com as mãos, trabalha também com a cabeça e com os olhos, não é só reproduzir a nível fotográfico.

Como foi produzir os azulejos do metro de Lisboa?

Vocês não fazem ideia do que foi fazer esse trabalho. Foi “o meu grande trabalho”, sei que fiz como devia fazer, porque mais ninguém quis. Foi o desprezo total. Todos diziam que era “trabalho de pedreiro”. O meu marido, que era o arquitecto do metro, um dia veio ter comigo e disse que não havia dinheiro para nada, só para o comboio e para as linhas. O que é que nós podíamos fazer? Decidimos fazer azulejos, que era uma coisa que estava completamente desprezada e banida. Foi um sucesso, lá na fábrica Viúva Lamego, porque nunca tinham trabalho. Um “azulejozinho” quadrado de 12 x 12… Não houve nada que não me fizessem. Destruíram tudo, porque era preciso aumentar as estações. Depois, não me chamaram mais, chamaram “os artistas”.

 

Podiam ter conservado os azulejos.

Mantiveram apenas o painel da Avenida Infante Santo, que foi feito muito mais tarde. Os azulejos eram para casas de banho e cozinhas. Isto é uma coisa tradicional, com milhares de anos, do tempo dos árabes e ninguém lhe soube dar valor.

Como é que surgiu a ideia de fotografar a “Roupa a Secar no Bairro Alto”?

Isso, por acaso, tem piada. A minha casa no Bairro Alto tem um terraço para trás, que dá para um jardim e quintais. Um vizinho que mora por cima também tem um terraço onde pendura a roupa, que cai sobre a minha varanda. E eu via a roupa com o sol a bater por trás, iluminada, com aquela transparência… era lindo. Eu peguei na máquina, fotografei aquilo tudo e ficou uma coisa muito gira! São coisas que acontecem…

 

Inspirava-se muito naquilo que via da sua varanda?

Não inspirava nada, não diga essas coisas, depois dizem que os pintores são malucos.

 

Não dizem nada: tem que ir buscar inspiração a algum lado…

Não é inspiração, é ocasião, observação.

Então para fazer ilustrações de livros para crianças, observava-as.

Sim, isso era uma coisa muito densa. Por exemplo, para fazer ilustrações para o livro do Aquilino Ribeiro, teve que ser uma coisa relacionada com o que estava escrito.

Tinha sempre uma relação com os autores que ilustrava? Identificava-se com a obra deles?

Há outra maneira de trabalhar, se não metermo-nos dentro do ofício que estamos a fazer?

Houve alguma ilustração que tivesse gostado particularmente de fazer?

Tirando a cinta “Pompadour”, que já não posso ouvir falar nisso…

Não falamos mais na cinta, vamos antes falar de livros, dos que ilustrou e dos que escreveu.

Às vezes tenho cá dentro uma coisa que tem de sair. As influências de fora também trabalham cá dentro, depois a gente passa na máquina e sai o que sai, o que cada um é capaz de escrever, e às vezes sai mal que se farta.

Era muito difícil ser mulher e ser artista antes do 25 de Abril?

Continua a ser, fácil ou difícil não sei. O 25 de Abril é outra coisa, mexe com o país inteiro, com a mentalidade das pessoas.

 

Mas em termos artísticos, quais foram as diferenças que mais notou?

É tão difícil responder a isso. Por exemplo, imagine que vai por aí fora e que tem um chão cheio de ervas ou pedras: você contorna. É a mesma coisa na vida normal: há uma quantidade de coisas que é preciso contornar. No 25 de Abril, o chão mudou, a gente andava e pensava de outra maneira, abriram-se portas… O mundo mudou completamente.

 

Tem alguma perspectiva para 2009?

Isto está muito mal e não é só cá, nem é só de agora. São os restos, foi a massa que foi sendo amassada. Agora vamos sofrer muito, eu já não, mas vocês vão.

 

Mas acredita que depois virá uma nova era?

Não. Tão cedo, não. Eu não sou perita nessas coisas, não percebo muito de política, mas as notícias são muito más, em todo o lado. Não sei como estão os países do norte, mas aqui para baixo está muito feio, coitados de vocês.

 

O que acha que era mais urgente mudar?

Era acabar com a raça humana e deixar os bichos à solta, comendo-se uns aos outros, se não os humanos vão acabar por fazê-lo. Existem ricos a mais, com dinheiro a mais para gastar. Vejam lá se melhoram isto!

 

De que forma? O que acha que podemos fazer?

Não sei. Ao menos tenham respeito pelos outros. Vamos ver se aquilo na América se conserta…

 

Tem esperança nisso?

É muito difícil: um negro na presidência dos Estados Unidos é difícil. Oxalá ele consiga, parece ser boa pessoa.

 

Considera-se feliz?

Sim. Tive muita sorte. O meu marido era um encanto de pessoa, e conheci gente tão bonita. Há gente tão boa neste país, que sofre muito. Eu assisti à destruição de gente de grande valor, que foi morta, viveu na miséria.

 

Mas toda a nossa geração conhece o seu trabalho.

A sério? Mais uma razão para eu não aparecer. Eu não sei conversar…

 

Muitos ilustradores do nosso tempo são influenciados por si.

Sim, nós copiamo-nos muito uns aos outros. Mas é preciso copiar bem, se não percebe-se (risos).

 

Entrevista de Ana Catarina Pereira

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