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Miguel Gomes

 

 “Aquele querido mês de Agosto” é o seu mais recente filme. O júri de “Caminhos” atribuiu-lhe o Grande Prémio do festival, por aquilo que designaram como um “refrescante valor artístico. De uma forma aparentemente simples e desenvolta, o filme consegue levar o espectador a reflectir sobre diversos aspectos essenciais ao fenómeno cinematográfico.”

 Num registo de ficção, documentário e making of, Miguel Gomes viajou até Arganil, na região do país que muitos designam como “Beira Serra”, e filmou uma história de amor entre dois primos adolescentes.

 

Tens, neste momento, seis curtas e duas longas-metragens. A primeira, “A Cara que Mereces”, é de 2004.

 Sim, parte de uma frase que diz “até aos 30 anos tens a cara que Deus te deu, a partir daí tens a cara que mereces”. A personagem faz 30 anos, é infantil e insuportável, zanga-se com a namorada e com a mãe, até se isolar e ficar com sarampo. Nessa altura, como na história da Branca de Neve, surgem sete amigos para tratar dele. O filme reinventa um bocado a infância, como o Peter Pan; é sobre o cinema que, por vezes, nos permite voltar a acreditar.

Há um tema comum nos teus filmes.

 

 Sim, este personagem tem que inventar um filme para poder crescer e se poder salvar. Nesse sentido, há alguma coisa em comum com o “Aquele querido mês de Agosto”, onde inicialmente há uma crise, parece que não conseguimos avançar e, de repente, quando estão reunidas todas as condições, pessoas e histórias, acabamos por decidir: “vamos fazer um filme”. Em ambos há um momento de crise e só a realização de um filme é que nos permite continuar a nossa vida.

Partiste de um guião com uma história de amor entre dois adolescentes e depois encontraste material para muito mais. Tiveste aquilo que muitos poderão chamar um golpe de sorte. O que respondes a isso?

 

 Eu gosto que as pessoas pensem isso. O processo foi muito orgânico e muitas coisas que as pessoas acreditam ser verdadeiras não o são. No filme, há um senhor Armando que canta uma canção de Marco Paulo no Karaoke e que depois, na segunda parte, é recuperado como baterista da banda. O Manuel Soares, que fala da hérnia discal e do milagre de ter-se cruzado com a Nossa Senhora, surge também a fazer um personagem que é o pai do Hélder. Quando os filmei ainda não fazia ideia que eles iam ser personagens. Mas, por exemplo, os dois protagonistas já tinham sido escolhidos em castings. Quando filmei o Fábio a jogar hóquei e a Sónia como vigia florestal já sabia que eles iam fazer aqueles personagens, mas inseri-os na montagem como todos os outros, como se os tivesse encontrado ali. Na montagem, percebemos que a estrutura deveria ser aquela: uma série de encontros. A partir do momento em que as pessoas acreditam que o filme é documental, passam a ter uma relação muito mais crédula, directa e inocente com aquilo que vêem, o que me agrada muito. Hoje em dia existe demasiado a consciência que tudo é falso ou manipulação. Neste caso, a manipulação também foi muito grande mas não é assim tão visível.

Como é que o envolvimento da equipa técnica foi surgindo?

 

 A partir da minha percepção que, se estávamos a pedir a uma série de pessoas para serem personagens de um filme, nós também deveríamos fazê-lo, por uma questão de justiça social. Se estivéssemos todos atrás da câmara, a filmar as pessoas daquela região, havia qualquer coisa de invasão: estávamos muito mais defendidos que eles. O filme é esse encontro entre o cinema, os técnicos e as pessoas da região.

Portanto, se alguém achar que o filme pode ser uma espécie de documentário que goza com o universo daquela música em particular, está enganado.

 Isso tem a ver com a sensibilidade de cada um. Eu sabia que estava a trabalhar com um universo onde existem uma série de preconceitos. Não se trata propriamente de música etnográfica, com um carácter nobre e cultural. Trate-se de uma música completamente híbrida, mas é a que se ouve naquela região - não se ouvem músicas de há 300 anos, isso é um mito. Apesar de essa música ter muita coisa que eu não gosto, não é isso que realmente importa, mas antes o tipo de empatia criada com as pessoas que a escutam. E isso não tem nada de gozo, pelo menos não foi essa a minha intenção.

Como é que surgiu a cena do beijo, filmada em contra-luz?

 

 O facto dos rostos dos actores deixar de ser visível, por estarem em contra-luz, é, ou não, bonito? Aquilo que pode ser visto noutro filme como um erro técnico, no meu caso pode ser uma situação desejável. Os actores dão um beijo sobre a ponte do Rio Alva, que também está associada ao Paulo Moleiro. De repente, reconheces que a ponte de onde ele se atira é a mesma onde eles se beijam. Há também a entrada do Grupo de Bombos de São Nicolau, que antes tinham denunciado o Paulo Moleiro como uma “triste figura”. Há uma espécie de reconciliação de tudo (um barquinho que entra sobre o rio e os bombos que passam sobre a ponte do Paulo Moleiro) precisamente por causa desse beijo. Podermos manipular as coisas dessa maneira e, ao mesmo tempo, assumir esta manipulação. Mesmo sabendo que é falso, podes estar emocionalmente disponível para acreditar que o primeiro beijo entre dois adolescentes, num Verão, é uma coisa tão importante e tão cósmica que pode sintonizar o universo. É uma mentira racional, mas também pode ser uma verdade emocional.

 Identificas-te com o cinema português que tem sido feito nos últimos 10 a 15 anos?

Nos últimos anos surgiram alguns realizadores que dizem não ter nenhuma relação com o cinema português. Não é o meu caso: eu tenho essa relação que deriva do facto de ter visto alguns filmes portugueses que fazem parte da minha memória, sem me esforçar por isso. Não posso dizer, como o António Ferreira, o Tiago Guedes ou o Marco Martins, que o cinema português não é uma referência para mim. Eu lembro-me, por exemplo, de ter 16 anos e ter visto um filme português muito importante para mim: “As Recordações da Casa Amarela”, do João César Monteiro. Fiquei impressionado por ver a minha cidade de Lisboa e, ao mesmo tempo, sentir que se podia fazer um cinema tão livre. Não sei se estou mais próximo deste ou daquele realizador: quando estou a fazer filmes não penso nisso mas, de qualquer forma, os filmes portugueses fazem parte da minha experiência de vida.

O que é que ainda continua a fazer falta no cinema português?

 

 Filmes, porque cada vez se fazem menos. Os filmes portugueses são todos diferentes entre si. Por vezes há a tentação de falar de um cinema português, mas isso não existe. Mesmo entre o cinema de autor, os filmes são muito diferentes. Entre um filme do Costa, do Oliveira e do Rocha há universos e desejos diferentes de cinema.

O que estás a pensar fazer agora?

Este filme estreou em Cannes no ano passado, fez quase 40 festivais, vai passar em 15 salas de cinema em França a partir de Junho, estrear em vários países da América Latina, e até na Nova Zelândia. O filme já tem uma vida própria e já não precisa muito de mim. Agora gostava de tentar fazer outro filme, chamado “Aurora”, sobre o qual não posso dizer nada. Este último filme ensinou-me que, entre aquilo que está escrito e aquilo que se vai passar na realidade, há um percurso enorme a percorrer.

 

Ana Catarina Pereira

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